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sexta-feira, 8 de agosto de 2008

DE VOLTA AOS OITENTA


Rubens Pereira


Para sua própria surpresa, ele acordou. Do jeito que fora dormir na noite passada – entupido de cachaça até os tímpanos – chegara a pensar que nunca mais veria a luz do sol. Mas lá estava o astro - dourado, pontual e enxerido - espreitando pelos vãos da janela e, talvez, zombando da sua aparência andrajosa.

Olhou para o espelho trincado, que refletia um rosto com barba de semanas, olhos vermelhos e a pele judiada e crivada de vincos, trilhas que sinalizavam, à perfeição, os rumos por onde a sua vida desandara.

Sacudiu o bule, pingou as últimas gotas de café no copo sujo e sorveu-as a contragosto, como se engolisse um remédio.

Em seguida, arrastou os pés rumo à sala que mais parecia uma praça de guerra, com jornais velhos, meias usadas, pratos e garfos espalhados sobre o cobertor mata-febre que envolvia o sofá, numa tentativa inútil de esconder os rasgos e buracos de cigarros que permeavam o tecido encardido. Quadros baratos jaziam tortos nas paredes mal pintadas. O tapete roto guardava manchas de todos os tipos e cores. Um relógio cuco sem ponteiros e sem o cuco, uma cortina de pano fino e ensebado e um aparelho de TV, mostrando imagens em cores manchadas e mal focadas, completavam o ambiente kafkiano.

Agachou-se e passou a tatear o chão, em meio ao monte de tralhas. Ao sentir a lisura de um pedaço de papel, entendeu que tinha achado o que procurava: com as pontas dos dedos, pinçou a foto de uma mulher sorridente e bonita. No verso, a dedicatória, em letras redondas: “Para o Zé, meu amor eterno”. Não pôde deixar de sorrir ao ler a palavra “eterno” e murmurou: “Eterno enquanto dure... o dinheiro... acho que foi isso o que ela quis dizer”.

Acendeu o isqueiro, queimou a foto e atirou as cinzas pela janela, para que não remanescessem vestígios e foi abrindo caminho por entre a bagunça para poder sentar-se no sofá. Num pedaço de jornal, reviu manchetes antigas: ele tinha o hábito de comparar as previsões e promessas de ontem com os fatos da atualidade e se divertia com as disparidades que encontrava.

Enquanto lia, pressentiu um vulto. Mas, quem poderia ser, se ninguém entrava naquela casa havia meses? Retesado como um perdigueiro espreitando a presa, ele firmou o olhar e viu algo tão absurdo que o fez desmaiar. Recobrou os sentidos pouco depois, imaginando ter saído de mais um dos seus pesadelos.

Mas não era outro sonho mau! Postado à sua frente, estava alguém que lhe era completamente familiar: na fisionomia, no rosto, no jeito, nas expressões corporais, em tudo. Ele conhecia muito bem aquele cara. Diante dele, estava... ele! Ele mesmo! Só que muito mais conservado e bem vestido. O “outro ele” sorria do seu espanto. O “outro ele” trazia um grande livro nas mãos, igual ao que ele imaginava que São Pedro lhe mostraria no dia do juízo, no gran finale. Ele pensou: “Preciso parar de meter o pé na jaca; já devo estar com o tal do delirium tremens. Daqui a pouco, vou começar a ver jacarés subindo pelas paredes”.

Ele esfregou os olhos e, como a aparição persistia, gaguejou, ainda incrédulo:
- Quem... quem é você?

- Eu sou você. Não o resto de gente em que você se transformou. Sou quem você deveria ter sido.

Nervoso, ele correu à cozinha e serviu-se de uma dose generosa de cachaça. Arremessou o líquido diretamente na goela, limpou a boca com o punho da camisa e voltou para a sala, onde o “outro ele” o aguardava impaciente:

- Foi beber de novo?

- E o que me resta fazer nesta vida inútil? Agora, pra piorar, estou vendo até assombração.

- Vamos conversar. Sente-se aí.

Sentaram-se, o “outro ele” abriu o grande livro sobre a mesa, olhou-o dentro dos olhos e disse:

- Comecemos pela causa-raiz de todos os seus males. Você se lembra disto aqui?

Bestificado, ele olhou para o livro aberto e viu uma foto sua, do tempo em que tinha uns oito, nove anos. Ao seu lado, amigos de infância. Alguns ele não via há décadas. Sim, ele se lembrava, mas e daí?

- Daí que este menino aqui, o Adriano, como você bem sabe, hoje é o presidente de uma poderosa multinacional. Mas talvez você não saiba que este outro, o Décio, a quem você chamava de idiota, tornou-se um empresário próspero e famoso. Este aqui...

- Parado aí! Chega! Você surge do além só pra jogar a última pá de cal na minha cova? Está querendo me deprimir ainda mais, fazer com que eu me sinta pior do que estou? Quer que eu me suicide, é isso?

- Não. Estou aqui por uma razão bem diversa. E você vai ter que me ouvir, querendo ou não. Não vou sair daqui, antes que você escute tudo o que tenho para dizer.

Sem escolha, ele concordou em seguir com aquela comédia truanesca. O “outro ele” tornou ao livro e abriu uma página adiante. Desta vez, a foto era de uma menina bonita, de cabelos castanho-escuros e longos, com um sorriso brilhante e malicioso e um rosto perfeito, que faria parar um desfile militar.

- Sobre esta eu nem vou perguntar, porque você sabe muito bem quem é. A imagem dela persegue você até hoje.

Ele fixou as vistas na foto da Daniela, então com uns 18 anos, por aí. “Ela já era linda naquele tempo”, pensou. Mas, o que o “outro ele” estaria querendo afinal? Ele não estava entendendo nada...

- Pois é, eis a Daniela, a mulher que, com a sua imprescindível colaboração, com o seu pleno consentimento, enterrou você nesse buraco sem fundo.

- Tá, mas e aí?

O “outro ele” folheou novamente o livro, até parar na imagem de uma moça simpática, que, porém, não era bonita como a outra:

- Desta aqui talvez você não se recorde.

- Espere. Vou lembrar... deixe-me ver... ah, já sei: é a Lúcia.

- Aleluia! Pelo visto, o álcool ainda não destruiu todos os seus neurônios. É ela mesma.

A Lúcia! Enquanto corria atrás da Daniela, que o desprezava, a Lúcia rastejava por ele, que a repudiava. Convenhamos: a Daniela era um monumento, uma deusa, a mulher mais fantástica, maravilhosa e sensual da escola, do bairro, da cidade, do mundo ...da Via Láctea. Quando saiam juntos, ele pressentia os olhares famintos dos outros homens mapeando aquele corpo sinuoso, escultural. Dava até para ouvir os espasmos de bocas salivando. E a Lúcia, com muito boa vontade, até que ficava um bocadinho atraente, mas só quando observada de um único e determinado ângulo. Confrontá-la com a Daniela seria uma inominável covardia, algo assim como um partida entre o time do Barcelona e o da Portuguesa. Sorriu ante a comparação: ele aprendera com os políticos a valer-se de metáforas futebolísticas para explicar tudo o que não conseguia descrever com outras palavras.

Os três ficaram nesse jogo de gato e rato, interpretando ao vivo aquele famoso poema do Drummond, durante anos, até que, inexplicavelmente, a Daniela levou um fora do noivo e foi procurar consolo nos seus braços. Logo estavam namorando. E casaram-se tão rapidamente, que as más línguas chegaram a comentar que a Daniela poderia estar grávida, o que não era verdade, como se viu depois.

O início foi paradisíaco. Não há como negar que eles viveram bons momentos juntos. Por influência de um tio bem posto em Brasília, ele obtivera um cargo de assessor de um famoso deputado. Melhor impossível: ganhava oficialmente bem (sem falar nos “recursos não contabilizados”...), tinha todas as regalias, inúmeras mordomias e era muito respeitado.

Passados alguns meses, porém, a realidade despencou sobre as suas cabeças, como entulhos e destroços de um prédio implodido. Amores unilaterais sempre acabam soterrados pela inexorabilidade dos fatos, pela ausência de sentimentos e... pela falta de dinheiro. A polícia federal flagrou o deputado, seu chefe, com dólares embaixo da calça (foi ele o verdadeiro precursor da “cueca ecológica”). Como não era muito popular entre os seus assim denominados “pares”, o parlamentar perdeu o mandato. E ele, o emprego.

Ato contínuo, o dinheiro acabou e a Daniela foi embora. Ela não conseguia viver sem carros do ano, sem as roupas da Daslu e sem as três empregadas. Eles ainda se encontraram furtivamente uma ou duas vezes. “O sexo! Pelo menos, o sexo era bom” – ele tentava argumentar, quase implorando, enquanto ela retrucava: “Sexo não enche barriga. Aliás, enche, mas não do jeito que eu quero...”.

Semanas depois, Daniela conseguiu se aproximar do Adriano, que já era presidente de uma indústria mundial de pneus. Casaram-se e foram viver em Nova York, onde fica a sede da empresa.

Desde então, ele entrara em uma depressão profunda, descera às profundezas do quinto dos infernos, passara a beber diuturnamente e chegara àquele estágio em que nada mais importava.

Paradoxalmente, essa ampla meditação sobre a realidade fez com que ele voltasse à situação surrealista:

- Mas, o que tem que ver a Lúcia? Onde você conseguiu essas fotos, se nem eu sabia que elas existiam. Quem as tirou?

- Calma! Isto não é um programa de entrevistas e você, desnutrido desse jeito, está longe de parecer o Jô Soares. Não são fotos. São flagrantes da sua vida; reproduções de imagens registradas pelo seu cérebro.

Definitivamente, ele iria parar de beber. A partir da próxima segunda-feira, nunca mais chegaria perto de um copo de bebida. Aquele “outro ele” só poderia ser reflexo de um fígado corroído.

- Então, vamos combinar: essas imagens todas são reproduções do meu cérebro combalido. E quanto à Lúcia, vai falar de uma vez onde ela entra nessa história toda ou vai continuar enrolando, como se estivesse depondo numa CPI?

Serenamente, o “outro ele” voltou ao livro e mostrou-lhe uma nova foto (ou melhor: uma nova “imagem registrada”). De um casamento. A noiva era a Lúcia, sem dúvida. E o noivo... o noivo parecia com o.... ah, com o Décio. Isto! Era o Décio. O “outro ele” percebeu:

- Pela sua expressão, você reconheceu o noivo. Pois, então: o Décio casou-se com a Lúcia, que provou ser uma grande mulher e, como reza o antigo ditado, transformou-o em um grande homem. Ela levou o Décio à posição de destaque financeiro e social que ele ocupa hoje. Ela foi e continua sendo o seu esteio, o seu suporte, a sua guarida. Ela poderia ter sido tudo isso para você. Veja só como uma escolha, como uma simples escolha equivocada pode arruinar uma vida inteira.

Compenetrado, ele ouvia o “outro ele” recitar aquela cantilena. E o pior é que as suas palavras eram embasadas, tinham fundamento. Não havia como rebatê-las. O “outro ele” prosseguiu:

- Você certamente está pensando: o que adianta ficar com essa conversa toda se o que está feito está feito e não pode ser mudado? Todavia, a chave, a solução do enigma, a razão da minha presença aqui – que você achou inverossímil, a princípio - é exatamente esta: eu posso mudar o seu passado e, através dele, o seu presente e o seu futuro! Eu detenho poderes para lhe dar uma segunda e última chance de reverter esse quadro de miserabilidade; uma oportunidade para torná-lo um homem novamente.

Ele continuava ouvindo boquiaberto e só teve forças para murmurar, irônico:

- Mudar o passado como, seu maluco? Você tem uma máquina do tempo? Fala sério! Eu já vi esse filme - ele falava e gargalhava a um só tempo.

- Muito mais fácil do que isso, meu caro. Basta penetrar neste livro e você poderá modificar radicalmente a sua triste história.

Ele voou para a cozinha, outra vez. Entornou mais uma dose. O “outro ele” nem tentou impedi-lo, tendo em vista o seu estado apoplético. Ele voltou babando cachaça e bradando em bom som:

- Vou entrar nesse livro, seu louco? Um cara do meu tamanho vai caber num espaço desse? Mas, quer saber? Eu não tenho nada a perder. Foram-se a honra, a dignidade, a decência, a hombridade, a mulher, o dinheiro e a saúde - não necessariamente nessa ordem. Só sobrou este fiapo de vida, que se mantém como um malabarista na corda bamba e sem rede embaixo. Vou encarar essa, sim. Tomo mais uma, crio coragem e mergulho de cabeça em qualquer lugar, até naquela parede, se for necessário.

O “outro ele” interveio:

- Basta de bebida, homem. Contudo, que bom que você tomou pé da sua condição e está disposto a melhorá-la. Vamos lá, então: a hora é agora! Prepare-se. Olhe fixamente para esta página do livro da sua vida. Concentre-se...concentre-se...não pense em mais nada... sinta-se voltando nos anos, o relógio movendo-se rapidamente, vertiginosamente, no sentido anti-horário... as folhas do calendário sendo arrancadas pelo deslocamento do ar... concentre-se...

Ele fez tudo o que o “outro ele” ordenou e descobriu que a coisa funcionava de verdade. De repente, viu-se em meio a um turbilhão de acontecimentos. Milhares de rostos, corpos, objetos, carros, ruas, imóveis... tudo passava por ele zunindo, em um ritmo espacial, estonteante; ele se sentia como se estivesse dentro de um túnel de vento. Num dado momento, a velocidade foi reduzindo gradativamente e o ar rarefeito fez com que ele perdesse a consciência. Voltou a si, minutos depois. Ou horas ou anos antes. (Como medir o tempo quando se está viajando por ele?)

Inacreditavelmente, ele estava de volta à casa que fora dos seus pais. A primeira coisa diferente que notou foi a camisa estampada em cores berrantes que estava vestindo. Depois, as calças e os sapatos ridiculamente fora de moda. Correu para o espelho e quase caiu duro: estava com cabelos longos e –hosana! – as rugas tinham sumido. Teve a impressão de que alguém havia lhe injetado um tambor de botox. Não teve mais dúvidas: tinha voltado aos seus vinte e poucos anos.

Sua missão era resgatar a própria existência e ele precisava agir rapidamente. Saiu à procura de Lúcia. Tão logo a encontrou, tascou-lhe um beijo lascivo, demorado, voluptuoso, apaixonado e gritou, bem no meio da rua: “Eu te amo! Eu te amo!!! Case comigo!”

Lúcia, aturdida, não sabia o que dizer. Mas, é claro que ficou feliz com o pedido e o aceitou imediatamente.

Semanas depois, eles estavam diante do altar, trocando juras de amor e fidelidade eternos.

O tempo passava normalmente na nova vida e, como se estivesse revendo cenas de um documentário sobre a sua história, ele foi convidado a trabalhar como assessor do mesmo deputado federal. E o deputado foi flagrado com dólares na cueca, terminou cassado e ele perdeu o emprego.

- Que sina desgraçada! Se fosse pra ficar desempregado e na merda, eu não precisaria ter feito essa regressão toda.

Lúcia ouviu o marido reclamar e atribuiu aquelas frases desconexas ao desespero causado pela perda do cargo. Entretanto, ao contrário da Daniela, ela deu-lhe todo o apoio possível. Consolava-o a todo instante, tentando levantar a sua moral, e fez mais: começou a vender, para os amigos, parentes e vizinhos, os doces em compota que todos elogiavam, durante as reuniões que ela promovia em sua casa, nos idos das vacas gordas.

Lúcia também reuniu o dinheiro que havia economizado até então (diferente da Daniela, ela era econômica, sempre comprara suas roupas nas lojas de sacoleiros do Brás e pesquisava preços de tudo) e alugou um ponto, para vender os doces. O sucesso foi tão grande que, depois de poucos meses de trabalho duro, eles resolveram estabelecer franquias da confeitaria, que passou a chamar-se “La Vie en Doce”. Essa marca espalhou-se pelos quatro cantos do Brasil; em breve, eram quase cem as lojas franqueadas.

Em decorrência, os negócios se diversificaram. Eles constituíram uma holding e viraram donos de restaurantes, indústrias diversas, postos de gasolina, prestadoras de serviços, etc. De um império ilimitado.

Todavia, quanto mais trabalhava, na exata proporção em que se empenhava para fazer os negócios crescerem, Lúcia perdia os seus já parcos encantos femininos. Nem vista daquele certo prisma, ela conseguia atrair quem quer que fosse.

Ladinamente, valendo-se da confiança cega da mulher, ele foi passando todos os bens do casal para o seu nome. Quando terminou, moveu um processo de divórcio litigioso, alegando um cabedal de coisas sem fundamento e outras tantas fundamentadas e ganhou a ação. Num gesto que chamou de demonstração de desapego e desprendimento, ele consentiu em pagar uma pensão módica à ex-mulher, para que ela pudesse sobreviver com um certo conforto.

Nesse ínterim, ele foi atrás da Daniela, que ainda estava solteira. Casou-se com ela, quando saiu o divórcio, mas não antes que ela firmasse um detalhado e leonino (a seu favor, é claro) pacto nupcial, elaborado por uma junta de advogados, que preservava todos os seus direitos e, especialmente, todo o seu patrimônio, no caso de separação, fossem quais fossem os motivos.

Completado o plano, ele reuniu todos os seguranças do escritório central da sua empresa, além dos vigias do condomínio de luxo em que morava, e ordenou:

- Ouçam bem: se um cara bonitão, simpático, incrivelmente parecido comigo e carregando um livrão imenso embaixo do braço aparecer me procurando, não o deixem entrar de jeito nenhum. Para todos os efeitos, eu viajei e não tenho data para voltar.

Os anos de estágio nos saguões do Congresso não poderiam ter sido em vão...

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