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sexta-feira, 8 de agosto de 2008

AMOR DE ESTRADA

Rubens Pereira


Dizem que os caminhoneiros são como os marinheiros dos tempos românticos: têm um amor em cada porto ou, mais apropriadamente, em cada destino. Mesmo se essa improvável tese fosse plausível, Heraldo seria a exceção que confirma a regra.

Sábado, oito horas da manhã. Heraldo pisa fundo no acelerador do N10. Ainda faltam cento e vinte quilômetros para chegar ao destino, o que significa cerca de 1h30 de viagem, sem contar o tempo de demora da descarga, componente que, inexoravelmente, anda atrelado à complacência e ao humor oriundos dos céus.

Naquela data, ele e Mara estavam completando cinco anos de casados. Bodas de Madeira - ele havia se informado.

Heraldo era um marido fidelíssimo e o mais apaixonado do país, do mundo, do universo. No sofá-cama, devidamente protegida dos solavancos gerados pelas irregularidades da pista, ele transportava a carga mais valiosa: um ursinho de pelúcia, que a esposa havia lhe pedido, não com os lábios, mas com os olhos, que brilharam intensamente, quando ela viu o mimo, na vitrine de uma loja. Heraldo aproveitou um sábado de folga para comprar o urso, que permaneceu devidamente oculto, durante semanas, dentro da boléia. Até chegar o grande dia de entregá-lo à amada e poder vislumbrar novamente os seus olhinhos fulgurarem. A antevisão do ansiado momento impulsionava-o a seguir mais e mais depressa.

Montes, montanhas, encostas, riachos, pontes e muitas áreas verdes ficavam para trás, enquanto os ponteiros do relógio teimavam em não acompanhar a celeridade do seu pensamento. Finalmente, Heraldo chegou ao local de entrega, com as mãos juntas, suplicando que a fila de descarga não estivesse dobrando a esquina. Mas os deuses do asfalto pareciam estar cientes da importância daquele momento e, como num passe de mágica, as parcas carretas que Heraldo encontrou à sua frente foram esvaziadas em poucos minutos, assim como a dele próprio. Muitas horas antes do que previra, ele já estava liberado para festejar o aniversário com a esposa.

Heraldo teve a idéia de parar o caminhão uma quadra antes do lar e terminar o percurso a pé, levando o presente nos braços. Mara não ouviria o ronco do caminhão e ele poderia surpreendê-la duplamente, com a sua chegada e, sobretudo, com o ursinho. O percurso foi percorrido em milésimos de segundo e a sua expressão denotava uma alegria de adolescente, uma exultação tão pronunciada que quem pode vê-la nunca mais haverá de esquecer.

Chegou à porta da casinha simples, mas acolhedora e bem cuidada, toda caiada em um tom verde claro, que combinava com as árvores e flores que ele havia plantado e mantinha com esmero. Heraldo abriu a porta da cozinha com tato de cirurgião e entrou pisando macio, cuidando para não ser ouvido. Ela não estava na cozinha e Heraldo caminhou pé-ante-pé ao quarto, que costumava chamar, sem receio de parecer piegas, de “ninho de amor”. Estranhou: Mara também não estava no cômodo. Foi nesse instante que ele ouviu a voz da amada em alto volume. “Então é isso!”, ele pensou: ela deveria estar no banho, aprontando-se para a festa e cantava de felicidade e paixão. Ele vibrava intensamente com aquela abstração quando notou que a voz dela tornou-se mais grave e inexplicavelmente dividiu-se em duas.

Passado o estupor, Heraldo pôde distinguir nitidamente que a esposa não estava cantando. Ela bradava juras de amor e odes ao prazer. E a tal voz grave replicava, vociferando indecências.

Uma dormência no lado esquerdo do corpo foi o mal menor que aquela tragédia poderia lhe causar. Mas ele já se considerava morto e, ao que se sabe, os mortos não sofrem enfartes ou derrames. Saiu silenciosamente e conseguiu chegar ao caminhão. Deu a partida com ímpeto de entrar com o veículo banheiro adentro e acabar com as vidas dos hereges. Mas São Cristovão deve ter interferido e colocado um pouco de serenidade na sua mente alienada, porque ele mudou o trajeto e encaminhou-se velozmente à casa dos sogros, para dizer-lhes que Mara estava muito doente e que gritava pela presença dos pais. No curso da volta, Heraldo pediu ajuda a um policial conhecido e, chegando à rua, chamou todos os vizinhos, sempre a pretexto de socorrer a esposa que havia sido acometida por um mal súbito. Chegaram em bando. Heraldo abriu a porta. A mãe de Mara foi a primeira a entrar e desmaiou ao ver a filha e um desconhecido abraçados, ambos como vieram ao mundo. O pai, mesmo transtornado, encontrou forças para arrancar o intruso da sala e jogá-lo na rua do jeito em que se achava: nu em pelo.

Heraldo, que a tudo assistia, pediu calmamente ao policial que lavrasse o flagrante e que arrolasse todos os presentes como testemunhas. Depois, dirigiu-se à mulher, ordenou-lhe que juntasse as suas tralhas e que aproveitasse a presença dos pais para ir embora com eles e não aparecer nunca mais na sua frente. Quando todos saíram, Heraldo cuidou de procurar um profissional para trocar as chaves da residência. A separação judicial, cujos termos lhe foram amplamente favoráveis, foi formulada em prazo exíguo.

E quanto ao urso? Ah, o urso tornou-se o companheiro perenal de Heraldo e viaja com ele para todos os rincões do país, amarrado pelo cinto de segurança do banco de carona. É claro que ele conheceu outras mulheres. Mas, sempre que o romance tende a se tornar um pouco mais sério, basta que Heraldo fite o amigo urso para exorcizar o risco de compromisso, desaparecendo da cidade à máxima rotação que o motor do caminhão puder atingir.

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