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sexta-feira, 8 de agosto de 2008

LOS QUATRO

Rubens Pereira

Eram inseparáveis, os quatro. Ou melhor, “Los Quatro”. Foi assim que eles próprios se batizaram, como se formassem um grupo de música latina.

Entretanto, eram só amigos. Grandes e bons amigos, que, mesmo depois de casados, até depois que as décadas lhes tingiram de branco os remanescentes fios de cabelos, continuaram a se encontrar para beber, conversar, relembrar os “bons tempos” e, especialmente, para gargalhar, algo inusual nestes dias circunspectos.

Reparou que está cada vez mais difícil ouvir alguém gargalhar a “bandeiras despregadas”, como diziam os nossos antepassados? Quando isso ocorre, o ato é tão insólito que todos se voltam para o histriônico com olhares de censura, enquanto tentam descobrir se o indivíduo é louco, bêbado ou drogado. Ninguém atina tratar-se de um ser humano comum, que se encantou com uma piada ou com um caso hilariante. Rir alto virou sintoma de esquizofrenia. Mas Los Quatro sempre riram em volume ensurdecedor e sem qualquer resquício de cerimônia, até que veio a trágica notícia: o Luiz estava hospitalizado.

Luiz era o mais novo dos quatro - questão de meses, já que haviam crescido juntos e as idades regulavam. “Está com coisa ruim no bucho”, alguém cochichou. Por “bucho”, imaginou-se algum órgão ligado ao aparelho digestivo; por “coisa ruim”, supôs-se o pior.

Combinaram de ir ao hospital, sem demora, já na manhã do dia seguinte. Hugo ficou de buscar os outros dois e, precisamente às oito horas, lá estava ele na porta da casa de Antonio, de onde rumou para o apartamento do Ernesto, logo adiante.

No trajeto, só se ouviam impropérios, blasfêmias e resmungos. “Mas, logo o Luiz, que é o mais recatado de Los Quatro, que não fuma e bebe pouco?”, berravam, em meio a um alude de palavrões.

Chegaram. Na recepção, foram convocados a preencher minuciosos cadastros, antes de subirem ao apartamento para encontrar o Luiz, magro como um faquir, entubado até os olhos e cercado por um time de médicos e enfermeiras.

Hugo, que sempre fora o mais despachado do quarteto, cuidou de puxar pela gola do avental o médico que lhe pareceu mais graduado, arrastou-o para fora do quarto e, olhando-o no interior das retinas, disparou: “Doutor, diga o que está acontecendo com o nosso amigo. Conte tudo o que ele tiver de ruim. Não esconda nada e não enrole”.

O médico afastou as mãos de Hugo com os antebraços, ajeitou a gola do jaleco e, com aquele ar blasé que tipifica os doutores desta terminal era, para quem as mortes dos pacientes simplesmente fazem parte da rotina, dissertou, sem uma gota de emoção, como se estivesse narrando o capítulo da novela das oito da noite anterior: “O paciente Luiz está com câncer no estômago, em estágio avançado. Duvido que sobreviva, mas, se isso acontecer, por um milagre, ele nunca mais poderá ingerir nenhum alimento sólido”. Hugo poderia jurar que, ao final da frase, o médico esboçou um dissimulado sorriso sádico. Teve ímpeto de esmurrá-lo, mas concluiu que isso poderia piorar ainda mais a situação do Luiz.

Com lágrimas nos olhos, repassou o diagnóstico ao Antonio e ao Ernesto. Ato contínuo, entrou no quarto e, literalmente, expulsou os médicos e as enfermeiras, afirmando que eles precisavam ficar a sós com o amigo.

Puderam, enfim, conversar com o Luiz, que logrou soletrar, pausadamente, mastigando cada sílaba: “Meus grandes amigos. Que bom ver vocês. Quero pedir um favor: desliguem todos esses tubos de merda, me deixem morrer. O médico já falou que, se eu resistir, só vou poder comer mingau. Isso lá seria vida, para um carnívoro, como eu? Fora as outras implicações que ele não deve ter contado pra me poupar. Sejam amigos até o fim: abreviem o meu sofrimento”.

Como sempre, Hugo foi o primeiro a tomar a palavra: “Luiz, depois de velho você virou frouxo, é? Sempre pensei que você fosse macho e, agora, depois de 45 anos de amizade, vai querer me contar que é um fracote, um boiola? Seja firme, porra. Seja forte. Você se safa dessa e ainda vai sair com a gente, pra encher a cara, encarar uma blitz da lei seca e mandar o guarda enfiar o bafômetro no...”.

Luiz sorriu, mas os seus olhos fundos estavam vermelhos e desesperançados.

Fim do horário de visitas. Os três desceram ao estacionamento visivelmente abalados e permaneceram mudos até que um deles comentou que era hora do almoço e que estavam perto do “Bolinha”, conhecido restaurante de comida brasileira, localizado em São Paulo, na região dos jardins. “Grande idéia!” – concordaram os demais, em uníssono. E foram comer.

Moral da história: "coisa ruim” no bucho dos outros não é refresco, não, muito pelo contrário. Mas isso não impede, em absoluto, que se saboreie, vorazmente, uma suculenta feijoada completa.

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