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sexta-feira, 8 de agosto de 2008

A ÚLTIMA VIAGEM

Rubens Pereira


Todo velho motorista têm uma aura de dignidade diáfana e evidente e a retidão de caráter de um cavaleiro medieval.



Quinze de agosto de um ano destes. O dia amanheceu taciturno, mal-humorado, melancólico. Um comboio de nuvens pesadas movia-se pelo céu cinzento, soprado pelo vento fino, gelado e cortante que penetrava nos ossos. As nuvens, desgovernadas, ameaçavam desabar a qualquer instante. Um dia horrível, pois, daqueles em que ninguém tem vontade de sorrir.

Cabelos ralos e brancos, rosto crivado pelas dores e dissabores da vida, o velho caminhoneiro (que era simplesmente o “Velho”; todos o tratavam dessa forma) preparava o caminhão para a sua derradeira jornada de trabalho. Fez todos os preparativos de praxe, subiu na boléia e ficou admirando a fotografia, colada no painel, da esposa, cuja morte completava exatos três anos naquela data. O Velho pensou: “Será que é uma coincidência macabra ou mais uma entre as tantas ironias do destino, que nunca se fartou de me pregar peças?”

O Velho beijou a foto. Depois da morte da mulher, sentia-se o homem mais solitário do universo. Afinal, eles só tinham um ao outro. A única filha falecera com dezenove anos, vítima de um estúpido acidente de trânsito. Os dois filhos homens, depois que se formaram - à custa do suor que o pai derramou no assoalho do caminhão durante décadas, diga-se -, migraram para a capital e nunca mais voltaram. No começo, eles ainda telefonavam no Natal ou em outras datas especiais. Depois da morte da mãe, porém, nem isso. Aliás, nem ao enterro eles compareceram, culpando a grande distância e os múltiplos afazeres e compromissos profissionais.

Trinta dias atrás, o Velho fora chamado pelo dono da transportadora para conversar sobre “um assunto de vital importância”. Tímido e respeitoso, apresentou-se na sala do doutor, que, após elogiar o seu trabalho e agradecer-lhe pelos tantos anos de casa, disse-lhe, sem mais delongas:

- Desculpe, mas o senhor já não tem mais idade para dirigir caminhões. É um serviço pesado, um trabalho para pessoas mais jovens. E, falando nisso, o senhor já está aposentado há bem mais de dez anos e continuou trabalhando todo esse tempo. O senhor está tirando o emprego de um moço qualquer que precisa fazer a vida, do mesmo jeito que o senhor fez a sua.

O Velho retrucou:

- Quem pede desculpas sou eu, Seu Doutor, por ter a audácia de discordar do senhor, mas eu sempre fui mais fiel à sua transportadora do que cachorro de mendigo. E nunca causei um acidente desde o dia em que aquele santo e saudoso homem, que era o seu pai, me contratou e isso já faz quarenta e seis anos! Não sou de entregar ninguém e nem seria preciso, porque o senhor sabe melhor do que eu que muitos desses motoristas jovens que trabalham aqui mesmo são uns “calças-brancas” e já lhe causaram uma porção de prejuízos, com batidas, multas de velocidade, motores fundidos, câmbios estourados e outras navalhadas.

- Velho, eu sei de tudo isso. Mas, se o senhor sofrer um acidente exatamente agora, mesmo depois de tantos anos de direção impecável, a seguradora vai questionar o motivo de eu ter permitido que um motorista da sua idade continuasse trabalhando. E se houver vítimas, então, os advogados da parte contrária vão deitar e rolar em cima desse argumento. Não posso arriscar mais, entenda, por favor.

- Seu Doutor, o senhor sabe que a minha vida é aquele caminhão que está lá fora. É o caminhão mais limpo, o mais ajeitado, o mais bem cuidado e o mais bonito da transportadora. Pra mim, então, é o mais bonito do mundo. Depois que a Odete morreu, além de meu único amigo, ele passou a ser a minha família. Deus já me tirou a filha, depois a minha amada mulher e agora o senhor quer me tirar a única coisa que faz sentido na minha vida? O dinheiro que ganho da aposentadoria dá para os meus gastos. Portanto, se for o caso, eu trabalho de graça, só pelo gosto.

- Velho, pelo amor de Deus, o caso não é esse. Olha, você não sabe o quanto está sendo difícil, para mim, fazer este papel de carrasco. O meu pai gostava muito do senhor. Antes de morrer, ele chegou a me pedir que eu não o despedisse, que deixasse o senhor se aposentar como motorista da transportadora que ele fundou. E ninguém pode negar que eu cumpri o seu desejo além da conta, já que senhor se aposentou e trabalhou mais doze anos aqui. Portanto, vou marcar os trinta dias do aviso prévio. No dia em que o senhor sair, faremos questão de prestar-lhe uma bela homenagem. O senhor merece.

Olhos úmidos e pregados no chão, vergado como soe vergar um homem que perdeu seu horizonte, o velho balbuciou um “dá licença” e saiu da sala do patrão. No pátio, ficou contemplando o seu companheiro de tantas entregas e coletas. Chegou perto, abriu o porta-luvas, pegou a flanela e ficou acariciando a lataria vagarosamente, durante longos minutos. Só de imaginar que, dali a trinta dias, um desses motoristas jovens e descuidados estaria assumindo a direção do “seu” caminhão, o velho sentiu náuseas...

Jamais, em época alguma da história da humanidade, um espaço de trinta dias passou tão rápido. Num piscar de olhos, lá estava o velho caminhoneiro preparando-se para fazer a última entrega da sua vida.

O Velho examinou o romaneio: a entrega seria feita em uma cidade não muito distante. Ligou o motor, digitou a macro de início de viagem, no teclado do rastreador, engatou a segunda e partiu.

Logo, estava na estrada. Abriu o vidro para sentir o ar gelado. O caminhão estava mais lépido e macio do que nunca. E o velho dizia:

- Anda, nêgo véio! Engole o pó da estrada, que você foi feito pra isso, amigão. Acho que você tá caprichando porque sabe que vão separar a gente, no fim desta entrega. Amanhã, um motorista chucro vai montar em você, vai querer judiar de você, mas você não tem que deixar. Quando ele começar a arranhar as marchas, quebre! Parta a caixa de câmbio no meio. Deixe o navalha parado na estrada, com cara de bobo, sem eira e nem beira. Mostra pra ele que você está acostumado é com carinho.

Em dado momento, o Velho passou sobre uma ponte, que cruzava um rio largo e piscoso. Era o lugar predileto da falecida mulher. Quantas vezes eles tinham ido pescar naquele lugar! A princípio, a mulher detestava pescarias, talvez porque o hobby roubasse o já parco tempo livre do marido que deveria usufruí-lo com ela. E ela também desconfiava se o marido iria pescar mesmo; tinha ouvido tantas histórias de caminhoneiros que se achava no direito de duvidar.

Até que, um dia, o Velho cansou-se das crises de ciúmes da esposa e disparou:

_ Odete, pra ter certeza de que eu vou pescar mesmo, só tem um jeito: venha junto.

__Ir junto, Velho? Para tirar os pobres dos peixinhos da água? Para encher os meus únicos sapatos de passeio de barro? Esquece.

__Olhe aí! Você acaba de concordar comigo que eu saio pra pescar de verdade, que não estou simplesmente querendo arrumar um alvará pra fazer sem-vergonhices. Se quiser confirmar de verdade, venha comigo, uai. Me faça companhia.

__Quer saber? Pois eu vou mesmo. Espere um minuto que vou trocar de roupa.

Odete foi e se apaixonou pela pescaria. Não por causa dos peixes, que, quando fisgava um, ela tratava de devolvê-lo à água imediatamente. Ela amava, isto sim, o silêncio, a quietude quebrada apenas pelo gorjear dos passarinhos. E, acima de tudo, ela sentia prazer em estar junto do marido.

O Velho consultou o relógio. Viu que estava adiantado e deu-se ao luxo de parar em frente ao rio, por uns dez minutos, tempo suficiente para desfrutar das doces recordações que o local lhe trazia. Isto feito, tocou em frente e, cento e oitenta quilômetros depois, o Velho chegou ao destino.

Surpreendentemente, não havia fila de espera, naquele dia. Ele aproveitou a sorte, teclou a macro de chegada, abriu as portas do baú e encostou de ré, na plataforma. Em instantes, estava, ele mesmo, no chão do armazém, puxando os paletes com o carrinho hidráulico, sob o olhar de admiração dos ajudantes que tinham menos da metade da sua idade.

Descarga efetuada, ele recolheu os comprovantes, seguiu para a filial que a transportadora mantinha naquele município e entregou-os ao encarregado. O Velho não sentia fome e resolveu voltar sem almoçar.

No retorno, parou cem metros antes daquela mesma ponte de onde se podia ver o rio que lhe enchia o coração de saudades da mulher e, até, dele mesmo.

Enquanto grossas lágrimas lhe escorriam pelos sulcos da face, ele sussurrou um “desculpe, amigão”, engatou uma marcha de força, ganhou velocidade e direcionou o caminhão de encontro à mureta de proteção da ponte.

O Velho espremeu a foto da mulher contra o peito, enquanto ele e o seu amigo mergulharam no rio.

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