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sexta-feira, 8 de agosto de 2008

MEDO DE AVIÃO

Rubens Pereira

“Foi por medo de avião... que eu segurei, pela primeira vez, na sua mão”...
Numa rotina masoquista, era essa a música que Dario ouvia no carro, sempre que se dirigia a um aeroporto.

Quarenta e cinco invernos vividos, advogado de uma empresa de âmbito nacional, divorciado e típico representante de uma classe que ele, jocosamente, chamava de média oscilante, a profissão o obrigava a viajar de avião constantemente, uma das coisas que mais detestava.

Em pleno século XXI, é difícil acreditar que alguém ainda sinta medo de voar, mas o sentimento do Dario transcendia, extrapolava: era paúra, pavor, desespero. Nas noites que antecediam às viagens, seu suor encharcava a cama; nos poucos instantes em que cochilava, sonhava com explosões, choques com picos e quedas no mar. Para piorar, ele nunca aprendera a nadar e não tinha idéia do que poderia ser mais sinistro: uma colisão na serra ou um mergulho no oceano. “Talvez a primeira hipótese seja mais rápida e indolor” – filosofava.

Ele justificava o seu indisfarçável pânico dizendo que não era o único; existiam milhões de pessoas que compartilhavam o seu temor: “Até os papas, que crêem piamente na vida eterna, têm medo de avião”. Ante a perplexidade do ouvinte, ele arrematava: “Repare bem que a primeira coisa que um papa faz, quando desce do avião, é ajoelhar-se, erguer e abaixar os braços em reverência ao infinito e beijar o chão. Se isso não é uma ação de graças por estar pisando em terra, o que mais pode ser?”

Para proteger-se, Dario havia criado algumas muletas psicológicas. A mais curiosa delas: sempre saía de casa, rumo ao aeroporto, em cima da hora. Entendia que, se perdesse o vôo por culpa do trânsito ou de um outro imprevisto qualquer, o destino estaria conspirando a seu favor, porque o avião poderia estar fadado a cair e, devido a um misterioso desígnio, ele seria poupado.

Tempos atrás, ele agia ainda mais radicalmente: saía quinze minutos atrasado. Mesmo assim, só perdeu o horário uma vez. Mas, além de não ter acontecido nada com o avião que decolou antes da sua chegada, ele teve que pagar, do próprio bolso, a diferença de tarifas na compra de outra passagem. E quase perdeu o prazo da audiência que faria na cidade a que se destinava. Depois disso, ele passou a sair precisamente no horário limite.

Contudo, ele não se valia das suas alienações para construir fantasias sobre os escombros das tragédias. Longe disso. Ao contrário de três amigos seus, que, embora não fossem freqüentadores habituais de aeroportos, juravam que deveriam estar a bordo daquele vôo fatídico, cujo acidente vitimou várias pessoas. Segundo suas estapafúrdias versões, um não conseguiu fazê-lo porque o pneu do carro estourou e o estepe também estava furado; outro, porque o marido da amante chegou mais cedo em casa e ele teve que passar oito horas escondido no armário; e, o terceiro, porque uma aeromoça deslumbrante aproximou-se, toda sorridente, engatou uma conversa e, por motivos óbvios, o duplamente felizardo acabou desistindo de embarcar.

Dario calculava: se somente ele tinha três amigos que se salvaram, fazendo uma projeção aritmética simples sobre o restante da população paulistana que viaja de avião, um milhão e trezentos mil predestinados também perderam aquele vôo, por razões diversas, o que caracterizaria o maior “over booking” da história da aviação mundial. “Como as pessoas conseguem mentir a respeito de uma coisa tão séria?” - refletia.

“Aeromoças”! A simples menção dessa palavra fazia Dario surfar nas ondas da imaginação. Desde o divórcio, ele tinha atravessado dezenas de namoros e casos com mulheres de todos os tipos, credos e profissões: de médicas a políticas, de empresárias a operárias; de artistas a advogadas, mas ficou faltando uma aeromoça. Nunca, nunquinha, uma aeromoça tinha olhado para ele com um olhar que não fosse de inquieta comiseração. Talvez porque o pânico sempre estivesse patente em seu rosto e as aeromoças não apreciem homens que temam o equipamento que lhes dá o sustento.

Com surpresa e espanto, ele vinha notando que as aeromoças desapareciam a cada viagem. Tornavam-se uma espécie em extinção, como o mico-leão dourado e o urso panda. As companhias, inexplicavelmente, estavam preferindo os tais “comissários de bordo”. Uma iniciativa esquisita, incompreensível e de péssimo gosto, que acabaria sepultando, de vez, as chances de consumar o seu fetiche.

Supersticioso ao extremo, Dario cumpria outros rituais, antes de viajar. Usava somente o pé direito para descer do carro, adentrar aos saguões do aeroporto, pisar na área do portão de embarque e, principalmente, para entrar no avião. Escolhia, invariavelmente, os assentos localizados nos fundos e sempre no corredor. Tinha pavor de olhar pela janelinha e fazia questão absoluta de manter a cortina fechada. Se alguém ameaçasse abri-la, ele dizia que sofria de acrofobia e poderia ter um ataque incontrolável de loucura, a qualquer momento, se houvesse a menor chance de enxergar uma nuvem gorda bem ali na janela, quase a roçar o seu vetusto queixo. Via de regra, esse argumento era suficiente para convencer até os mais fervorosos amantes das paisagens aéreas.

Apesar das centenas de milhares de milhas voadas, Dario era o único passageiro que sempre prestava atenção às recomendações de segurança demonstradas pela aeromoça (enquanto ainda não estavam praticamente extintas), pelo comissário ou pelo bonequinho que surgia nos monitores. Mais do que isso: ele fazia anotações a caneta para consultas de emergência: “Seu assento pode ser usado como salva-vidas... em caso de descompressão, coloque a máscara...”

Encerrada a demonstração, ele retirava um papel do bolso do paletó e começava a recitar em voz alta: “O avião é o meio de transporte mais seguro do mundo. Para cada pessoa morta em um acidente de avião, existem milhares de outras vitimadas por colisões de automóveis”. Só que, bem lá no centro do cérebro, a razão bisbilhoteira retrucava: “Mas, quantos milhões de automóveis existem para cada avião?”

Dario já tentara de tudo: concentrar-se na leitura (até que o passageiro ao lado alertou que a revista estava de cabeça para baixo) e escrever (mas as palavras ficavam tão tremidas que ninguém conseguia decifrá-las, nem ele mesmo), dentre outras ineficazes artimanhas.

Os momentos mais dramáticos eram os da decolagem e do pouso. Ele fechava os olhos e punha-se a rezar em um dialeto que nem o mais capacitado filólogo conseguiria identificar. Numa ocasião, ele exagerou: iniciou a oração, ao passo em que lágrimas pesadas escorriam por entre os seus olhos cerrados; quando a operação de pouso finalmente terminou, ele se deu conta de que estava agarrando, com toda a força, a mão direita do seu vizinho de assento, que o fitava estupefato.

Durante anos, assim que entrava no avião, ele fazia questão de ir à cabine, só para conferir a fisionomia do piloto. Causava-lhe um certo alívio constatar que, se voar não era nada seguro, pelo menos ele tinha um deus a protegê-lo. Um homem acima de qualquer suspeita. Que não bebia, não fumava, tinha uma vida familiar modelar, irretocável e harmoniosa, gozava de saúde idêntica à da vaca premiada do Nelson Rodrigues e estava lá exclusivamente para ajudá-lo a vencer os imponderáveis perigos de voar, mesmo porque nem um nem outro viera ao mundo provido de asas.

Jamais lhe passou pela cabeça que aqueles homens intocáveis, de semblantes sisudos e portes acima de qualquer suspeita, fossem de carne e osso e padecessem das mazelas comuns aos pobres mortais, como ele. Esse instrumento de autodefesa funcionou a contento, até que, numa noite qualquer, em um dos bares de solteiros que costumava freqüentar, ele sentou-se junto ao balcão, pediu a bebida de sempre e notou uma figura que não lhe era estranha, a não ser pela situação e pelo local. O sujeito estava caindo de bêbado, havia entornado todas e, chorando feito um bezerro alado, berrava aos quatro cantos:

__Cheguei mais cedo em casa e peguei minha mulher com o personal trainer, em cima da nossa cama de casal. E o duro é que ela estava gostando. Do jeito que sempre se portou comigo, eu pensava que ela fosse frígida ou achasse que sexo dá câncer. Como pude ser tão imbecil? Sou um chifrudo desgraçado! Um corno! Um corno manso!!!! Cornoooooooooooo!!!

Dario finalmente reconheceu o infeliz: era o Comandante Pessanha, um dos tantos misto de piloto e deus que ele costumava venerar como salvadores da sua vida. Dario não resistiu e se aproximou:

___Eu conheço o senhor, Comandante Pessanha. Já voamos juntos muitas vezes. Lamento pelo que aconteceu ao seu casamento. Imagino que, em função desse terrível trauma, o senhor vá abandonar a aviação.

Cambaleante, o piloto retrucou, em voz pastosa e trêmula:

__ Abandonar o quê, passageiro? Eu tenho vôo marcado pra daqui a duas horas e já estou de saída.

Desde esse dia, Dario desistiu terminantemente de visitar as cabines. Deu para cismar: e se um piloto enlouquecer de repente e resolver acabar com a própria vida? E se, por uma infeliz coincidência, ele estiver, naquele preciso momento, pilotando um Boeing repleto de desafortunados passageiros? Passageiros que jamais poderiam supor que os deuses também desatinam. Sim, os deuses piravam, ele sabia.

Dario tanto penou em suas viagens que acabou desistindo de voar para sempre. Por isso, foi demitido. Atualmente, ele passa os dias no aeroporto, distribuindo panfletos (pedagógicos, segundo ele) que, em letras garrafais, recomendam:

CUIDADO, PASSAGEIRO!

  • Aviões não são seguros.
  • Lá em cima não tem oficina.
  • Pilotos não são deuses; são seres humanos sujeitos aproblemas. Podem ser traídos por suas esposas, ficarem desconsolados, encherem a cara e saírem dirigindo aviões, assim mesmo.
  • Pilotos podem enlouquecer e conduzirem você para um pouso no inferno. Sem escalas.

    P.S.: E, mesmo se assim não fosse, você não é passarinho para poder voar. Conforme-se com o que a natureza lhe facultou: ande. Se não puder andar, arraste-se, engatinhe ou rasteje. No máximo, rode. Mas, seja lá o que for, faça tudo sempre em terra firme.

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