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terça-feira, 23 de setembro de 2008

TRÊS MESES

Faz três meses que os derradeiros resquícios de perspectiva se esvaíram
Como poeira fina soprada ao lufar do vento
Faz três meses que as remanescentes revelações de fé partiram,
Carregadas pelo ceticismo, pelo desalento
Faz três meses que envelheci trinta anos; que a visão da realidade
Transformou-me em um louco
Faz três meses que morri... que morri de novo e mais um pouco

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

AMOR DE ESTRADA

Rubens Pereira


Dizem que os caminhoneiros são como os marinheiros dos tempos românticos: têm um amor em cada porto ou, mais apropriadamente, em cada destino. Mesmo se essa improvável tese fosse plausível, Heraldo seria a exceção que confirma a regra.

Sábado, oito horas da manhã. Heraldo pisa fundo no acelerador do N10. Ainda faltam cento e vinte quilômetros para chegar ao destino, o que significa cerca de 1h30 de viagem, sem contar o tempo de demora da descarga, componente que, inexoravelmente, anda atrelado à complacência e ao humor oriundos dos céus.

Naquela data, ele e Mara estavam completando cinco anos de casados. Bodas de Madeira - ele havia se informado.

Heraldo era um marido fidelíssimo e o mais apaixonado do país, do mundo, do universo. No sofá-cama, devidamente protegida dos solavancos gerados pelas irregularidades da pista, ele transportava a carga mais valiosa: um ursinho de pelúcia, que a esposa havia lhe pedido, não com os lábios, mas com os olhos, que brilharam intensamente, quando ela viu o mimo, na vitrine de uma loja. Heraldo aproveitou um sábado de folga para comprar o urso, que permaneceu devidamente oculto, durante semanas, dentro da boléia. Até chegar o grande dia de entregá-lo à amada e poder vislumbrar novamente os seus olhinhos fulgurarem. A antevisão do ansiado momento impulsionava-o a seguir mais e mais depressa.

Montes, montanhas, encostas, riachos, pontes e muitas áreas verdes ficavam para trás, enquanto os ponteiros do relógio teimavam em não acompanhar a celeridade do seu pensamento. Finalmente, Heraldo chegou ao local de entrega, com as mãos juntas, suplicando que a fila de descarga não estivesse dobrando a esquina. Mas os deuses do asfalto pareciam estar cientes da importância daquele momento e, como num passe de mágica, as parcas carretas que Heraldo encontrou à sua frente foram esvaziadas em poucos minutos, assim como a dele próprio. Muitas horas antes do que previra, ele já estava liberado para festejar o aniversário com a esposa.

Heraldo teve a idéia de parar o caminhão uma quadra antes do lar e terminar o percurso a pé, levando o presente nos braços. Mara não ouviria o ronco do caminhão e ele poderia surpreendê-la duplamente, com a sua chegada e, sobretudo, com o ursinho. O percurso foi percorrido em milésimos de segundo e a sua expressão denotava uma alegria de adolescente, uma exultação tão pronunciada que quem pode vê-la nunca mais haverá de esquecer.

Chegou à porta da casinha simples, mas acolhedora e bem cuidada, toda caiada em um tom verde claro, que combinava com as árvores e flores que ele havia plantado e mantinha com esmero. Heraldo abriu a porta da cozinha com tato de cirurgião e entrou pisando macio, cuidando para não ser ouvido. Ela não estava na cozinha e Heraldo caminhou pé-ante-pé ao quarto, que costumava chamar, sem receio de parecer piegas, de “ninho de amor”. Estranhou: Mara também não estava no cômodo. Foi nesse instante que ele ouviu a voz da amada em alto volume. “Então é isso!”, ele pensou: ela deveria estar no banho, aprontando-se para a festa e cantava de felicidade e paixão. Ele vibrava intensamente com aquela abstração quando notou que a voz dela tornou-se mais grave e inexplicavelmente dividiu-se em duas.

Passado o estupor, Heraldo pôde distinguir nitidamente que a esposa não estava cantando. Ela bradava juras de amor e odes ao prazer. E a tal voz grave replicava, vociferando indecências.

Uma dormência no lado esquerdo do corpo foi o mal menor que aquela tragédia poderia lhe causar. Mas ele já se considerava morto e, ao que se sabe, os mortos não sofrem enfartes ou derrames. Saiu silenciosamente e conseguiu chegar ao caminhão. Deu a partida com ímpeto de entrar com o veículo banheiro adentro e acabar com as vidas dos hereges. Mas São Cristovão deve ter interferido e colocado um pouco de serenidade na sua mente alienada, porque ele mudou o trajeto e encaminhou-se velozmente à casa dos sogros, para dizer-lhes que Mara estava muito doente e que gritava pela presença dos pais. No curso da volta, Heraldo pediu ajuda a um policial conhecido e, chegando à rua, chamou todos os vizinhos, sempre a pretexto de socorrer a esposa que havia sido acometida por um mal súbito. Chegaram em bando. Heraldo abriu a porta. A mãe de Mara foi a primeira a entrar e desmaiou ao ver a filha e um desconhecido abraçados, ambos como vieram ao mundo. O pai, mesmo transtornado, encontrou forças para arrancar o intruso da sala e jogá-lo na rua do jeito em que se achava: nu em pelo.

Heraldo, que a tudo assistia, pediu calmamente ao policial que lavrasse o flagrante e que arrolasse todos os presentes como testemunhas. Depois, dirigiu-se à mulher, ordenou-lhe que juntasse as suas tralhas e que aproveitasse a presença dos pais para ir embora com eles e não aparecer nunca mais na sua frente. Quando todos saíram, Heraldo cuidou de procurar um profissional para trocar as chaves da residência. A separação judicial, cujos termos lhe foram amplamente favoráveis, foi formulada em prazo exíguo.

E quanto ao urso? Ah, o urso tornou-se o companheiro perenal de Heraldo e viaja com ele para todos os rincões do país, amarrado pelo cinto de segurança do banco de carona. É claro que ele conheceu outras mulheres. Mas, sempre que o romance tende a se tornar um pouco mais sério, basta que Heraldo fite o amigo urso para exorcizar o risco de compromisso, desaparecendo da cidade à máxima rotação que o motor do caminhão puder atingir.

Rubens Pereira


Todo velho motorista têm uma aura de dignidade diáfana e evidente e a retidão de caráter de um cavaleiro medieval.



Quinze de agosto de um ano destes. O dia amanheceu taciturno, mal-humorado, melancólico. Um comboio de nuvens pesadas movia-se pelo céu cinzento, soprado pelo vento fino, gelado e cortante que penetrava nos ossos. As nuvens, desgovernadas, ameaçavam desabar a qualquer instante. Um dia horrível, pois, daqueles em que ninguém tem vontade de sorrir.

Cabelos ralos e brancos, rosto crivado pelas dores e dissabores da vida, o velho caminhoneiro (que era simplesmente o “Velho”; todos o tratavam dessa forma) preparava o caminhão para a sua derradeira jornada de trabalho. Fez todos os preparativos de praxe, subiu na boléia e ficou admirando a fotografia, colada no painel, da esposa, cuja morte completava exatos três anos naquela data. O Velho pensou: “Será que é uma coincidência macabra ou mais uma entre as tantas ironias do destino, que nunca se fartou de me pregar peças?”

O Velho beijou a foto. Depois da morte da mulher, sentia-se o homem mais solitário do universo. Afinal, eles só tinham um ao outro. A única filha falecera com dezenove anos, vítima de um estúpido acidente de trânsito. Os dois filhos homens, depois que se formaram - à custa do suor que o pai derramou no assoalho do caminhão durante décadas, diga-se -, migraram para a capital e nunca mais voltaram. No começo, eles ainda telefonavam no Natal ou em outras datas especiais. Depois da morte da mãe, porém, nem isso. Aliás, nem ao enterro eles compareceram, culpando a grande distância e os múltiplos afazeres e compromissos profissionais.

Trinta dias atrás, o Velho fora chamado pelo dono da transportadora para conversar sobre “um assunto de vital importância”. Tímido e respeitoso, apresentou-se na sala do doutor, que, após elogiar o seu trabalho e agradecer-lhe pelos tantos anos de casa, disse-lhe, sem mais delongas:

- Desculpe, mas o senhor já não tem mais idade para dirigir caminhões. É um serviço pesado, um trabalho para pessoas mais jovens. E, falando nisso, o senhor já está aposentado há bem mais de dez anos e continuou trabalhando todo esse tempo. O senhor está tirando o emprego de um moço qualquer que precisa fazer a vida, do mesmo jeito que o senhor fez a sua.

O Velho retrucou:

- Quem pede desculpas sou eu, Seu Doutor, por ter a audácia de discordar do senhor, mas eu sempre fui mais fiel à sua transportadora do que cachorro de mendigo. E nunca causei um acidente desde o dia em que aquele santo e saudoso homem, que era o seu pai, me contratou e isso já faz quarenta e seis anos! Não sou de entregar ninguém e nem seria preciso, porque o senhor sabe melhor do que eu que muitos desses motoristas jovens que trabalham aqui mesmo são uns “calças-brancas” e já lhe causaram uma porção de prejuízos, com batidas, multas de velocidade, motores fundidos, câmbios estourados e outras navalhadas.

- Velho, eu sei de tudo isso. Mas, se o senhor sofrer um acidente exatamente agora, mesmo depois de tantos anos de direção impecável, a seguradora vai questionar o motivo de eu ter permitido que um motorista da sua idade continuasse trabalhando. E se houver vítimas, então, os advogados da parte contrária vão deitar e rolar em cima desse argumento. Não posso arriscar mais, entenda, por favor.

- Seu Doutor, o senhor sabe que a minha vida é aquele caminhão que está lá fora. É o caminhão mais limpo, o mais ajeitado, o mais bem cuidado e o mais bonito da transportadora. Pra mim, então, é o mais bonito do mundo. Depois que a Odete morreu, além de meu único amigo, ele passou a ser a minha família. Deus já me tirou a filha, depois a minha amada mulher e agora o senhor quer me tirar a única coisa que faz sentido na minha vida? O dinheiro que ganho da aposentadoria dá para os meus gastos. Portanto, se for o caso, eu trabalho de graça, só pelo gosto.

- Velho, pelo amor de Deus, o caso não é esse. Olha, você não sabe o quanto está sendo difícil, para mim, fazer este papel de carrasco. O meu pai gostava muito do senhor. Antes de morrer, ele chegou a me pedir que eu não o despedisse, que deixasse o senhor se aposentar como motorista da transportadora que ele fundou. E ninguém pode negar que eu cumpri o seu desejo além da conta, já que senhor se aposentou e trabalhou mais doze anos aqui. Portanto, vou marcar os trinta dias do aviso prévio. No dia em que o senhor sair, faremos questão de prestar-lhe uma bela homenagem. O senhor merece.

Olhos úmidos e pregados no chão, vergado como soe vergar um homem que perdeu seu horizonte, o velho balbuciou um “dá licença” e saiu da sala do patrão. No pátio, ficou contemplando o seu companheiro de tantas entregas e coletas. Chegou perto, abriu o porta-luvas, pegou a flanela e ficou acariciando a lataria vagarosamente, durante longos minutos. Só de imaginar que, dali a trinta dias, um desses motoristas jovens e descuidados estaria assumindo a direção do “seu” caminhão, o velho sentiu náuseas...

Jamais, em época alguma da história da humanidade, um espaço de trinta dias passou tão rápido. Num piscar de olhos, lá estava o velho caminhoneiro preparando-se para fazer a última entrega da sua vida.

O Velho examinou o romaneio: a entrega seria feita em uma cidade não muito distante. Ligou o motor, digitou a macro de início de viagem, no teclado do rastreador, engatou a segunda e partiu.

Logo, estava na estrada. Abriu o vidro para sentir o ar gelado. O caminhão estava mais lépido e macio do que nunca. E o velho dizia:

- Anda, nêgo véio! Engole o pó da estrada, que você foi feito pra isso, amigão. Acho que você tá caprichando porque sabe que vão separar a gente, no fim desta entrega. Amanhã, um motorista chucro vai montar em você, vai querer judiar de você, mas você não tem que deixar. Quando ele começar a arranhar as marchas, quebre! Parta a caixa de câmbio no meio. Deixe o navalha parado na estrada, com cara de bobo, sem eira e nem beira. Mostra pra ele que você está acostumado é com carinho.

Em dado momento, o Velho passou sobre uma ponte, que cruzava um rio largo e piscoso. Era o lugar predileto da falecida mulher. Quantas vezes eles tinham ido pescar naquele lugar! A princípio, a mulher detestava pescarias, talvez porque o hobby roubasse o já parco tempo livre do marido que deveria usufruí-lo com ela. E ela também desconfiava se o marido iria pescar mesmo; tinha ouvido tantas histórias de caminhoneiros que se achava no direito de duvidar.

Até que, um dia, o Velho cansou-se das crises de ciúmes da esposa e disparou:

_ Odete, pra ter certeza de que eu vou pescar mesmo, só tem um jeito: venha junto.

__Ir junto, Velho? Para tirar os pobres dos peixinhos da água? Para encher os meus únicos sapatos de passeio de barro? Esquece.

__Olhe aí! Você acaba de concordar comigo que eu saio pra pescar de verdade, que não estou simplesmente querendo arrumar um alvará pra fazer sem-vergonhices. Se quiser confirmar de verdade, venha comigo, uai. Me faça companhia.

__Quer saber? Pois eu vou mesmo. Espere um minuto que vou trocar de roupa.

Odete foi e se apaixonou pela pescaria. Não por causa dos peixes, que, quando fisgava um, ela tratava de devolvê-lo à água imediatamente. Ela amava, isto sim, o silêncio, a quietude quebrada apenas pelo gorjear dos passarinhos. E, acima de tudo, ela sentia prazer em estar junto do marido.

O Velho consultou o relógio. Viu que estava adiantado e deu-se ao luxo de parar em frente ao rio, por uns dez minutos, tempo suficiente para desfrutar das doces recordações que o local lhe trazia. Isto feito, tocou em frente e, cento e oitenta quilômetros depois, o Velho chegou ao destino.

Surpreendentemente, não havia fila de espera, naquele dia. Ele aproveitou a sorte, teclou a macro de chegada, abriu as portas do baú e encostou de ré, na plataforma. Em instantes, estava, ele mesmo, no chão do armazém, puxando os paletes com o carrinho hidráulico, sob o olhar de admiração dos ajudantes que tinham menos da metade da sua idade.

Descarga efetuada, ele recolheu os comprovantes, seguiu para a filial que a transportadora mantinha naquele município e entregou-os ao encarregado. O Velho não sentia fome e resolveu voltar sem almoçar.

No retorno, parou cem metros antes daquela mesma ponte de onde se podia ver o rio que lhe enchia o coração de saudades da mulher e, até, dele mesmo.

Enquanto grossas lágrimas lhe escorriam pelos sulcos da face, ele sussurrou um “desculpe, amigão”, engatou uma marcha de força, ganhou velocidade e direcionou o caminhão de encontro à mureta de proteção da ponte.

O Velho espremeu a foto da mulher contra o peito, enquanto ele e o seu amigo mergulharam no rio.

Rubens Pereira

Tenho lembranças fúnebres da morte:
O vento cortando em fatias o torpor das noites frias;
Rosas fétidas, velórios repletos de gente vazia;
Refrões recitados com ensaiada letargia
("Todos vamos um dia, seja forte...")

E as gargalhadas que ecoam, antes que alguém as aborte?
Hipocrisia!
E as velas queimando passados futuros?
Chama sombria!
E a lava de sangue que escorre dos muros?
Hemorragia!
E os credos que pousam, do sul e do norte?
Santa heresia!

Perdi mil vidas para a morte, não me sobrou nenhuma,
Batalhas sem tréguas, sem regras, sem dó.
Mutilado de guerra, sem pernas, nem braços,
Sou resto de alma que um sopro escora
A vítrea pilastra, morto de cansaço,
Punhado disperso de enxofre, de pó.

Rubens Pereira

Tenho comigo que o suicídio é uma forma de vida,
Não, não aludo ao post mortem, que duvido exista,
Somente o betume do nada sobrevive ao formicida,
Só mesmo as trevas, por muito que o crente insista

Refiro-me ao estancar da angustura mais dorida,
À paralisia abrupta da saudade que habita
Todos os cômodos da alma de matiz indefinida,
Ao desenlace do horror que -dizem- a arte imita

A paz é direito lídimo de quem, obstinado, envida
Os últimos arroubos no granjear da eternidade finita,
Do derradeiro suspirar que a essência consolida

Entardece de há tanto, pois a noite ainda hesita,
Alheada, sem prever que, se o suicídio é forma de vida,
Resta apenas desejar longa vida ao suicida...

Rubens Pereira

Eram inseparáveis, os quatro. Ou melhor, “Los Quatro”. Foi assim que eles próprios se batizaram, como se formassem um grupo de música latina.

Entretanto, eram só amigos. Grandes e bons amigos, que, mesmo depois de casados, até depois que as décadas lhes tingiram de branco os remanescentes fios de cabelos, continuaram a se encontrar para beber, conversar, relembrar os “bons tempos” e, especialmente, para gargalhar, algo inusual nestes dias circunspectos.

Reparou que está cada vez mais difícil ouvir alguém gargalhar a “bandeiras despregadas”, como diziam os nossos antepassados? Quando isso ocorre, o ato é tão insólito que todos se voltam para o histriônico com olhares de censura, enquanto tentam descobrir se o indivíduo é louco, bêbado ou drogado. Ninguém atina tratar-se de um ser humano comum, que se encantou com uma piada ou com um caso hilariante. Rir alto virou sintoma de esquizofrenia. Mas Los Quatro sempre riram em volume ensurdecedor e sem qualquer resquício de cerimônia, até que veio a trágica notícia: o Luiz estava hospitalizado.

Luiz era o mais novo dos quatro - questão de meses, já que haviam crescido juntos e as idades regulavam. “Está com coisa ruim no bucho”, alguém cochichou. Por “bucho”, imaginou-se algum órgão ligado ao aparelho digestivo; por “coisa ruim”, supôs-se o pior.

Combinaram de ir ao hospital, sem demora, já na manhã do dia seguinte. Hugo ficou de buscar os outros dois e, precisamente às oito horas, lá estava ele na porta da casa de Antonio, de onde rumou para o apartamento do Ernesto, logo adiante.

No trajeto, só se ouviam impropérios, blasfêmias e resmungos. “Mas, logo o Luiz, que é o mais recatado de Los Quatro, que não fuma e bebe pouco?”, berravam, em meio a um alude de palavrões.

Chegaram. Na recepção, foram convocados a preencher minuciosos cadastros, antes de subirem ao apartamento para encontrar o Luiz, magro como um faquir, entubado até os olhos e cercado por um time de médicos e enfermeiras.

Hugo, que sempre fora o mais despachado do quarteto, cuidou de puxar pela gola do avental o médico que lhe pareceu mais graduado, arrastou-o para fora do quarto e, olhando-o no interior das retinas, disparou: “Doutor, diga o que está acontecendo com o nosso amigo. Conte tudo o que ele tiver de ruim. Não esconda nada e não enrole”.

O médico afastou as mãos de Hugo com os antebraços, ajeitou a gola do jaleco e, com aquele ar blasé que tipifica os doutores desta terminal era, para quem as mortes dos pacientes simplesmente fazem parte da rotina, dissertou, sem uma gota de emoção, como se estivesse narrando o capítulo da novela das oito da noite anterior: “O paciente Luiz está com câncer no estômago, em estágio avançado. Duvido que sobreviva, mas, se isso acontecer, por um milagre, ele nunca mais poderá ingerir nenhum alimento sólido”. Hugo poderia jurar que, ao final da frase, o médico esboçou um dissimulado sorriso sádico. Teve ímpeto de esmurrá-lo, mas concluiu que isso poderia piorar ainda mais a situação do Luiz.

Com lágrimas nos olhos, repassou o diagnóstico ao Antonio e ao Ernesto. Ato contínuo, entrou no quarto e, literalmente, expulsou os médicos e as enfermeiras, afirmando que eles precisavam ficar a sós com o amigo.

Puderam, enfim, conversar com o Luiz, que logrou soletrar, pausadamente, mastigando cada sílaba: “Meus grandes amigos. Que bom ver vocês. Quero pedir um favor: desliguem todos esses tubos de merda, me deixem morrer. O médico já falou que, se eu resistir, só vou poder comer mingau. Isso lá seria vida, para um carnívoro, como eu? Fora as outras implicações que ele não deve ter contado pra me poupar. Sejam amigos até o fim: abreviem o meu sofrimento”.

Como sempre, Hugo foi o primeiro a tomar a palavra: “Luiz, depois de velho você virou frouxo, é? Sempre pensei que você fosse macho e, agora, depois de 45 anos de amizade, vai querer me contar que é um fracote, um boiola? Seja firme, porra. Seja forte. Você se safa dessa e ainda vai sair com a gente, pra encher a cara, encarar uma blitz da lei seca e mandar o guarda enfiar o bafômetro no...”.

Luiz sorriu, mas os seus olhos fundos estavam vermelhos e desesperançados.

Fim do horário de visitas. Os três desceram ao estacionamento visivelmente abalados e permaneceram mudos até que um deles comentou que era hora do almoço e que estavam perto do “Bolinha”, conhecido restaurante de comida brasileira, localizado em São Paulo, na região dos jardins. “Grande idéia!” – concordaram os demais, em uníssono. E foram comer.

Moral da história: "coisa ruim” no bucho dos outros não é refresco, não, muito pelo contrário. Mas isso não impede, em absoluto, que se saboreie, vorazmente, uma suculenta feijoada completa.



Rubens Pereira


Seu nome é Uessilei. Assim mesmo: U-E-S-S-I-L-E-I, uma aberração etimológica de origem desconhecida; uma onomatopéia com som parecido ao de um espirro ruidoso. Seu pai, sempre que perguntado se o erro fora dele ou do escrevente do cartório, limitava-se a sorrir, enigmático, um riso maroto e contido, que apenas entortava para cima os cantos do bigode grisalho. Isso só aumentava as suspeitas de Uessilei de que aquele prenome fora gerado propositadamente, concebido por uma sádica libertinagem paterna. (Talvez ele tivesse nascido em uma má hora, vai saber...)

Bem, mas o Uessilei (tratem de se acostumar, por favor), apesar do prenome, crescera esperto e inteligente. “Uma raposa nos negócios e um falcão com as mulheres”, era assim que o descreviam, desde os primórdios.

Por pura e convicta opção, Uessilei ultrapassou solteiro a cabalística barreira dos quarenta e cinco anos. Aliás, “solteiríssimo!”, como ele costumava enfatizar, erguendo e abaixando os braços sucessivamente, como se estivesse batendo asas, numa tentativa de mostrar a amplidão de sua liberdade.

Uessilei morava em uma pequena mansão, no luxuoso condomínio “Alphaville”. Todavia, por praticidade, mantinha, também, um quarto-e-sala no Edifício Campos Elíseos, prédio residencial antigo e mal cuidado do centro de São Paulo, perto de onde ficava o escritório central da sua empresa. Quando saía tarde do trabalho, o que não era raro acontecer, Uessilei passava a noite no apartamento, que igualmente lhe servia de “matadouro”, ou melhor, de local onde ele “abatia as lebres” - mulheres de quase todos os gêneros que lhes caíam nas garras permanentemente eriçadas.

E foram centenas. E todas subiram ao apartamento “por amor”. Uessilei se gabava de nunca, nem na mais tenra e pueril idade, ter pago um centavo sequer de michê a uma prostituta.

Entretanto, Uessilei começou a denotar preocupação com o seu celibato, no dia em que, ao “bater as asas” para acompanhar a expressão “solteiríssimo”, sentiu uma fisgada no peito e, supersticioso que é, tomou aquilo como um aviso dos céus. Colocou na cabeça que chegara a hora de casar-se.

Mas, com quem?

Uessilei pôs-se a vasculhar as suas muitas agendas repletas de nomes femininos, criou uma planilha no computador interligada a um banco de dados, inseriu algumas informações, peneirou, filtrou, cismou a valer e chegou finalmente a duas mulheres: Beatriz e Ivonette.

Beatriz fora sua namorada durante uns sete meses; Ivonette não conseguiu passar do quinto. Beatriz era comerciante, tinha três lojas de roupas femininas espalhadas pelo Bom Retiro; Ivonette era gerente de uma agência da Caixa Econômica Federal. Ambas aparentaram ter sofrido o diabo quando ele as deixou, mas talvez ainda gostassem dele. Não custava tentar...

Uessilei telefonou-lhes quase que concomitantemente. E conseguiu marcar os dois encontros a pretexto de matar saudades, pôr a conversa em dia, etc..

Na quarta-feira, encontrou-se com a Beatriz, em um requintado restaurante italiano, já que ela sempre gostou de massa e de um chianti de boa safra. Depois do jantar, quase sem perceberem, eles já estavam se atracando no “matadouro”.

Com a Ivonette, foi na quinta-feira. E, o enredo, quase o mesmo (com exceção do restaurante, porque a Ivonette gosta de sushis): comida, bebida, papo e... Campos Elíseos.

Uessilei continuou saindo com as duas sem nenhum peso na consciência. Dizia que estava simplesmente fazendo test drives e que o seu futuro dependia de uma escolha acertada.

Depois de três meses de experiências, porém, ele estava mais em dúvida do que no começo. A Beatriz era encantadora, inteligente, espirituosa, culta e fogosa; a Ivonette, mais tímida, compensava essa deficiência com um jeito de dona do lar, um ar de retidão inabalável, típico de mulheres que, quando estão sozinhas, não olham para os lados nem para atravessar a rua. Mesmo assim, nos braços do amado, a Ivonette do olhar encabulado transformava-se numa messalina desvairada.

Difícil de escolher? Põe difícil nisso. Uessilei estava a um passo da loucura. Chegou até a procurar um padre para tentar dirimir a sua dúvida atroz, mas, logo no segundo parágrafo da história, o religioso o expulsou da igreja, esgrimindo um crucifixo e vociferando sonoros “vade retro, Satanás”.

Uessilei também foi procurar um psicólogo recomendado por sua secretária, mas percebeu à primeira vista que o cara era afeminado. “Como é que um indivíduo desse vai poder palpitar sobre mulher?”, ele pensou, enquanto saía sem a consulta.

Nos bares, então, nem se fale: quando não estava com uma ou outra namorada, Uessilei podia ser facilmente localizado em um dos muitos botequins que rodeiam o Campos Elíseos. Pedia opinião para amigos, para conhecidos, para desconhecidos, para os garçons e os copeiros, para quem quer que se atrevesse sentar à mesa ou na banqueta e pedir uma bebida. Sem exceção, todos lhe respondiam que esse é o tipo de decisão que um homem deve tomar sozinho, no máximo com a ajuda do travesseiro.

Até que um dia, depois de horas conjeturando, Uessilei viu um senhor entrar no bar e pedir um conhaque de boa linhagem. Ele nunca havia visto o homem por aquelas bandas. Parecia ser uma pessoa respeitável, trajava terno e usava gravata. Uessilei pensou: “Por que não?”, apresentou-se e engatou uma conversa com o estranho.

Depois de ouvir o caso todo, o homem disparou: “O senhor ainda não fez o teste mais importante!”. Uessilei retrucou: “Mas como? Eu já fiz todos os testes possíveis, imagináveis e inimagináveis. Que teste é esse do qual o senhor está falando?”. O homem de terno respondeu: “Elementar, meu caro Uessilei. Ainda falta o teste do cascalho!”.

“Teste do cascalho? Acho que esse cara anda assistindo demais ao programa do Ratinho!”. Enquanto pensava, Uessilei perguntou:

_O senhor poderia fazer a gentileza de explicar que raio de teste do cascalho é esse?

_ O teste do cascalho é o mais importante numa relação que se pretenda estável. Deveria ser exigido por lei, assim como os exames pré-nupciais. Me diz aí: do que é que uma mulher mais gosta?

_ De homem, ué!

_ Que nada, Uessilei! Você fez confusão com travesti. Traveco, sim, gosta de homem. As mulheres gostam é de dinheiro. Em maior ou menor intensidade, é o l’argent que faz os olhinhos delas revirarem. O importante é exatamente isso: poder medir a intensidade dessa paixão inata pelo vil metal; ter certeza de que não é apenas isso o que elas estão buscando, que ainda sobrou um quartinho de dois por dois, em seus coraçõezinhos gelados, para sentimentos mais nobres. Para resolver quem deverá ser a sua companheira, basta aplicar o teste do cascalho. O “modus operandis”, a forma de aplicar o teste, isso fica a critério da sua imaginação.

Impressionado com aquela revelação, Uessilei desviou o rosto para pedir ao garçom que servisse mais um conhaque ao seu novo guru, porém, quando voltou-se, viu que ele já havia saído ou desaparecera no ar, feito um gênio da lâmpada. “Será que esse senhor era um anjo enviado pelos céus para me tirar desta sinuca de bico?”, Uessilei matutava enquanto bicava o copo de conhaque. E o efeito do álcool logo lhe trouxe a inspiração salvadora. No dia seguinte, ele daria início ao “teste do cascalho”.

Oito e meia da manhã. Uessilei telefona para a Beatriz e lhe diz, de bate-pronto, que o jantar programado para aquela noite teria que ser cancelado. Ante a surpresa da namorada, Uessilei emendou dizendo que estava sem dinheiro até para pagar um restaurante, que sua empresa fora mortalmente lesada por uma arapuca e ele se encontrava falido. Todavia, ele tinha certeza de que se ergueria novamente em alguns anos e que o amor dela não diminuiria devido a essa situação passageira. A seguir, desligou com um beijo e o habitual “te amo”.

Uessilei aproveitou o embalo, ligou para a Ivonette e recitou a mesma trágica cantilena para desmarcar o almoço do dia seguinte. “Um beijo, te amo” e gancho.

No resto do dia, Uessilei não teve notícia alguma da Beatriz ou da Ivonette. Fato estranho, porque elas ligavam diariamente e quase sempre por várias vezes.

No outro dia, também nada. Decidiu ele mesmo entrar em contato com as duas e ouviu desculpas esfarrapadas diferentes para uma mesma revelação arrematadora: “Vamos ter que dar um tempo, Uessilei”.

Uessilei não sabia se chorava ou se gargalhava. Seu ânimo passou de um espanto indignado para a mais desmedida euforia. Estivesse onde estivesse aquele anjo de gravata, ele o abençoava, pleno de gratidão.

Depois de tomar fôlego, Uessilei foi à janela e ficou assistindo o trottoir das mariposinhas que fazem ponto ao redor do Campos Elíseos. Olhou, pensou e disse: “Nunca é tarde para começar. Vamos às meretrizes, pois, que essas ao menos estipulam o preço antes”.

Saiu e fechou a porta com um sorriso escancarado.

Rubens Pereira

“Foi por medo de avião... que eu segurei, pela primeira vez, na sua mão”...
Numa rotina masoquista, era essa a música que Dario ouvia no carro, sempre que se dirigia a um aeroporto.

Quarenta e cinco invernos vividos, advogado de uma empresa de âmbito nacional, divorciado e típico representante de uma classe que ele, jocosamente, chamava de média oscilante, a profissão o obrigava a viajar de avião constantemente, uma das coisas que mais detestava.

Em pleno século XXI, é difícil acreditar que alguém ainda sinta medo de voar, mas o sentimento do Dario transcendia, extrapolava: era paúra, pavor, desespero. Nas noites que antecediam às viagens, seu suor encharcava a cama; nos poucos instantes em que cochilava, sonhava com explosões, choques com picos e quedas no mar. Para piorar, ele nunca aprendera a nadar e não tinha idéia do que poderia ser mais sinistro: uma colisão na serra ou um mergulho no oceano. “Talvez a primeira hipótese seja mais rápida e indolor” – filosofava.

Ele justificava o seu indisfarçável pânico dizendo que não era o único; existiam milhões de pessoas que compartilhavam o seu temor: “Até os papas, que crêem piamente na vida eterna, têm medo de avião”. Ante a perplexidade do ouvinte, ele arrematava: “Repare bem que a primeira coisa que um papa faz, quando desce do avião, é ajoelhar-se, erguer e abaixar os braços em reverência ao infinito e beijar o chão. Se isso não é uma ação de graças por estar pisando em terra, o que mais pode ser?”

Para proteger-se, Dario havia criado algumas muletas psicológicas. A mais curiosa delas: sempre saía de casa, rumo ao aeroporto, em cima da hora. Entendia que, se perdesse o vôo por culpa do trânsito ou de um outro imprevisto qualquer, o destino estaria conspirando a seu favor, porque o avião poderia estar fadado a cair e, devido a um misterioso desígnio, ele seria poupado.

Tempos atrás, ele agia ainda mais radicalmente: saía quinze minutos atrasado. Mesmo assim, só perdeu o horário uma vez. Mas, além de não ter acontecido nada com o avião que decolou antes da sua chegada, ele teve que pagar, do próprio bolso, a diferença de tarifas na compra de outra passagem. E quase perdeu o prazo da audiência que faria na cidade a que se destinava. Depois disso, ele passou a sair precisamente no horário limite.

Contudo, ele não se valia das suas alienações para construir fantasias sobre os escombros das tragédias. Longe disso. Ao contrário de três amigos seus, que, embora não fossem freqüentadores habituais de aeroportos, juravam que deveriam estar a bordo daquele vôo fatídico, cujo acidente vitimou várias pessoas. Segundo suas estapafúrdias versões, um não conseguiu fazê-lo porque o pneu do carro estourou e o estepe também estava furado; outro, porque o marido da amante chegou mais cedo em casa e ele teve que passar oito horas escondido no armário; e, o terceiro, porque uma aeromoça deslumbrante aproximou-se, toda sorridente, engatou uma conversa e, por motivos óbvios, o duplamente felizardo acabou desistindo de embarcar.

Dario calculava: se somente ele tinha três amigos que se salvaram, fazendo uma projeção aritmética simples sobre o restante da população paulistana que viaja de avião, um milhão e trezentos mil predestinados também perderam aquele vôo, por razões diversas, o que caracterizaria o maior “over booking” da história da aviação mundial. “Como as pessoas conseguem mentir a respeito de uma coisa tão séria?” - refletia.

“Aeromoças”! A simples menção dessa palavra fazia Dario surfar nas ondas da imaginação. Desde o divórcio, ele tinha atravessado dezenas de namoros e casos com mulheres de todos os tipos, credos e profissões: de médicas a políticas, de empresárias a operárias; de artistas a advogadas, mas ficou faltando uma aeromoça. Nunca, nunquinha, uma aeromoça tinha olhado para ele com um olhar que não fosse de inquieta comiseração. Talvez porque o pânico sempre estivesse patente em seu rosto e as aeromoças não apreciem homens que temam o equipamento que lhes dá o sustento.

Com surpresa e espanto, ele vinha notando que as aeromoças desapareciam a cada viagem. Tornavam-se uma espécie em extinção, como o mico-leão dourado e o urso panda. As companhias, inexplicavelmente, estavam preferindo os tais “comissários de bordo”. Uma iniciativa esquisita, incompreensível e de péssimo gosto, que acabaria sepultando, de vez, as chances de consumar o seu fetiche.

Supersticioso ao extremo, Dario cumpria outros rituais, antes de viajar. Usava somente o pé direito para descer do carro, adentrar aos saguões do aeroporto, pisar na área do portão de embarque e, principalmente, para entrar no avião. Escolhia, invariavelmente, os assentos localizados nos fundos e sempre no corredor. Tinha pavor de olhar pela janelinha e fazia questão absoluta de manter a cortina fechada. Se alguém ameaçasse abri-la, ele dizia que sofria de acrofobia e poderia ter um ataque incontrolável de loucura, a qualquer momento, se houvesse a menor chance de enxergar uma nuvem gorda bem ali na janela, quase a roçar o seu vetusto queixo. Via de regra, esse argumento era suficiente para convencer até os mais fervorosos amantes das paisagens aéreas.

Apesar das centenas de milhares de milhas voadas, Dario era o único passageiro que sempre prestava atenção às recomendações de segurança demonstradas pela aeromoça (enquanto ainda não estavam praticamente extintas), pelo comissário ou pelo bonequinho que surgia nos monitores. Mais do que isso: ele fazia anotações a caneta para consultas de emergência: “Seu assento pode ser usado como salva-vidas... em caso de descompressão, coloque a máscara...”

Encerrada a demonstração, ele retirava um papel do bolso do paletó e começava a recitar em voz alta: “O avião é o meio de transporte mais seguro do mundo. Para cada pessoa morta em um acidente de avião, existem milhares de outras vitimadas por colisões de automóveis”. Só que, bem lá no centro do cérebro, a razão bisbilhoteira retrucava: “Mas, quantos milhões de automóveis existem para cada avião?”

Dario já tentara de tudo: concentrar-se na leitura (até que o passageiro ao lado alertou que a revista estava de cabeça para baixo) e escrever (mas as palavras ficavam tão tremidas que ninguém conseguia decifrá-las, nem ele mesmo), dentre outras ineficazes artimanhas.

Os momentos mais dramáticos eram os da decolagem e do pouso. Ele fechava os olhos e punha-se a rezar em um dialeto que nem o mais capacitado filólogo conseguiria identificar. Numa ocasião, ele exagerou: iniciou a oração, ao passo em que lágrimas pesadas escorriam por entre os seus olhos cerrados; quando a operação de pouso finalmente terminou, ele se deu conta de que estava agarrando, com toda a força, a mão direita do seu vizinho de assento, que o fitava estupefato.

Durante anos, assim que entrava no avião, ele fazia questão de ir à cabine, só para conferir a fisionomia do piloto. Causava-lhe um certo alívio constatar que, se voar não era nada seguro, pelo menos ele tinha um deus a protegê-lo. Um homem acima de qualquer suspeita. Que não bebia, não fumava, tinha uma vida familiar modelar, irretocável e harmoniosa, gozava de saúde idêntica à da vaca premiada do Nelson Rodrigues e estava lá exclusivamente para ajudá-lo a vencer os imponderáveis perigos de voar, mesmo porque nem um nem outro viera ao mundo provido de asas.

Jamais lhe passou pela cabeça que aqueles homens intocáveis, de semblantes sisudos e portes acima de qualquer suspeita, fossem de carne e osso e padecessem das mazelas comuns aos pobres mortais, como ele. Esse instrumento de autodefesa funcionou a contento, até que, numa noite qualquer, em um dos bares de solteiros que costumava freqüentar, ele sentou-se junto ao balcão, pediu a bebida de sempre e notou uma figura que não lhe era estranha, a não ser pela situação e pelo local. O sujeito estava caindo de bêbado, havia entornado todas e, chorando feito um bezerro alado, berrava aos quatro cantos:

__Cheguei mais cedo em casa e peguei minha mulher com o personal trainer, em cima da nossa cama de casal. E o duro é que ela estava gostando. Do jeito que sempre se portou comigo, eu pensava que ela fosse frígida ou achasse que sexo dá câncer. Como pude ser tão imbecil? Sou um chifrudo desgraçado! Um corno! Um corno manso!!!! Cornoooooooooooo!!!

Dario finalmente reconheceu o infeliz: era o Comandante Pessanha, um dos tantos misto de piloto e deus que ele costumava venerar como salvadores da sua vida. Dario não resistiu e se aproximou:

___Eu conheço o senhor, Comandante Pessanha. Já voamos juntos muitas vezes. Lamento pelo que aconteceu ao seu casamento. Imagino que, em função desse terrível trauma, o senhor vá abandonar a aviação.

Cambaleante, o piloto retrucou, em voz pastosa e trêmula:

__ Abandonar o quê, passageiro? Eu tenho vôo marcado pra daqui a duas horas e já estou de saída.

Desde esse dia, Dario desistiu terminantemente de visitar as cabines. Deu para cismar: e se um piloto enlouquecer de repente e resolver acabar com a própria vida? E se, por uma infeliz coincidência, ele estiver, naquele preciso momento, pilotando um Boeing repleto de desafortunados passageiros? Passageiros que jamais poderiam supor que os deuses também desatinam. Sim, os deuses piravam, ele sabia.

Dario tanto penou em suas viagens que acabou desistindo de voar para sempre. Por isso, foi demitido. Atualmente, ele passa os dias no aeroporto, distribuindo panfletos (pedagógicos, segundo ele) que, em letras garrafais, recomendam:

CUIDADO, PASSAGEIRO!

  • Aviões não são seguros.
  • Lá em cima não tem oficina.
  • Pilotos não são deuses; são seres humanos sujeitos aproblemas. Podem ser traídos por suas esposas, ficarem desconsolados, encherem a cara e saírem dirigindo aviões, assim mesmo.
  • Pilotos podem enlouquecer e conduzirem você para um pouso no inferno. Sem escalas.

    P.S.: E, mesmo se assim não fosse, você não é passarinho para poder voar. Conforme-se com o que a natureza lhe facultou: ande. Se não puder andar, arraste-se, engatinhe ou rasteje. No máximo, rode. Mas, seja lá o que for, faça tudo sempre em terra firme.


Rubens Pereira


Para sua própria surpresa, ele acordou. Do jeito que fora dormir na noite passada – entupido de cachaça até os tímpanos – chegara a pensar que nunca mais veria a luz do sol. Mas lá estava o astro - dourado, pontual e enxerido - espreitando pelos vãos da janela e, talvez, zombando da sua aparência andrajosa.

Olhou para o espelho trincado, que refletia um rosto com barba de semanas, olhos vermelhos e a pele judiada e crivada de vincos, trilhas que sinalizavam, à perfeição, os rumos por onde a sua vida desandara.

Sacudiu o bule, pingou as últimas gotas de café no copo sujo e sorveu-as a contragosto, como se engolisse um remédio.

Em seguida, arrastou os pés rumo à sala que mais parecia uma praça de guerra, com jornais velhos, meias usadas, pratos e garfos espalhados sobre o cobertor mata-febre que envolvia o sofá, numa tentativa inútil de esconder os rasgos e buracos de cigarros que permeavam o tecido encardido. Quadros baratos jaziam tortos nas paredes mal pintadas. O tapete roto guardava manchas de todos os tipos e cores. Um relógio cuco sem ponteiros e sem o cuco, uma cortina de pano fino e ensebado e um aparelho de TV, mostrando imagens em cores manchadas e mal focadas, completavam o ambiente kafkiano.

Agachou-se e passou a tatear o chão, em meio ao monte de tralhas. Ao sentir a lisura de um pedaço de papel, entendeu que tinha achado o que procurava: com as pontas dos dedos, pinçou a foto de uma mulher sorridente e bonita. No verso, a dedicatória, em letras redondas: “Para o Zé, meu amor eterno”. Não pôde deixar de sorrir ao ler a palavra “eterno” e murmurou: “Eterno enquanto dure... o dinheiro... acho que foi isso o que ela quis dizer”.

Acendeu o isqueiro, queimou a foto e atirou as cinzas pela janela, para que não remanescessem vestígios e foi abrindo caminho por entre a bagunça para poder sentar-se no sofá. Num pedaço de jornal, reviu manchetes antigas: ele tinha o hábito de comparar as previsões e promessas de ontem com os fatos da atualidade e se divertia com as disparidades que encontrava.

Enquanto lia, pressentiu um vulto. Mas, quem poderia ser, se ninguém entrava naquela casa havia meses? Retesado como um perdigueiro espreitando a presa, ele firmou o olhar e viu algo tão absurdo que o fez desmaiar. Recobrou os sentidos pouco depois, imaginando ter saído de mais um dos seus pesadelos.

Mas não era outro sonho mau! Postado à sua frente, estava alguém que lhe era completamente familiar: na fisionomia, no rosto, no jeito, nas expressões corporais, em tudo. Ele conhecia muito bem aquele cara. Diante dele, estava... ele! Ele mesmo! Só que muito mais conservado e bem vestido. O “outro ele” sorria do seu espanto. O “outro ele” trazia um grande livro nas mãos, igual ao que ele imaginava que São Pedro lhe mostraria no dia do juízo, no gran finale. Ele pensou: “Preciso parar de meter o pé na jaca; já devo estar com o tal do delirium tremens. Daqui a pouco, vou começar a ver jacarés subindo pelas paredes”.

Ele esfregou os olhos e, como a aparição persistia, gaguejou, ainda incrédulo:
- Quem... quem é você?

- Eu sou você. Não o resto de gente em que você se transformou. Sou quem você deveria ter sido.

Nervoso, ele correu à cozinha e serviu-se de uma dose generosa de cachaça. Arremessou o líquido diretamente na goela, limpou a boca com o punho da camisa e voltou para a sala, onde o “outro ele” o aguardava impaciente:

- Foi beber de novo?

- E o que me resta fazer nesta vida inútil? Agora, pra piorar, estou vendo até assombração.

- Vamos conversar. Sente-se aí.

Sentaram-se, o “outro ele” abriu o grande livro sobre a mesa, olhou-o dentro dos olhos e disse:

- Comecemos pela causa-raiz de todos os seus males. Você se lembra disto aqui?

Bestificado, ele olhou para o livro aberto e viu uma foto sua, do tempo em que tinha uns oito, nove anos. Ao seu lado, amigos de infância. Alguns ele não via há décadas. Sim, ele se lembrava, mas e daí?

- Daí que este menino aqui, o Adriano, como você bem sabe, hoje é o presidente de uma poderosa multinacional. Mas talvez você não saiba que este outro, o Décio, a quem você chamava de idiota, tornou-se um empresário próspero e famoso. Este aqui...

- Parado aí! Chega! Você surge do além só pra jogar a última pá de cal na minha cova? Está querendo me deprimir ainda mais, fazer com que eu me sinta pior do que estou? Quer que eu me suicide, é isso?

- Não. Estou aqui por uma razão bem diversa. E você vai ter que me ouvir, querendo ou não. Não vou sair daqui, antes que você escute tudo o que tenho para dizer.

Sem escolha, ele concordou em seguir com aquela comédia truanesca. O “outro ele” tornou ao livro e abriu uma página adiante. Desta vez, a foto era de uma menina bonita, de cabelos castanho-escuros e longos, com um sorriso brilhante e malicioso e um rosto perfeito, que faria parar um desfile militar.

- Sobre esta eu nem vou perguntar, porque você sabe muito bem quem é. A imagem dela persegue você até hoje.

Ele fixou as vistas na foto da Daniela, então com uns 18 anos, por aí. “Ela já era linda naquele tempo”, pensou. Mas, o que o “outro ele” estaria querendo afinal? Ele não estava entendendo nada...

- Pois é, eis a Daniela, a mulher que, com a sua imprescindível colaboração, com o seu pleno consentimento, enterrou você nesse buraco sem fundo.

- Tá, mas e aí?

O “outro ele” folheou novamente o livro, até parar na imagem de uma moça simpática, que, porém, não era bonita como a outra:

- Desta aqui talvez você não se recorde.

- Espere. Vou lembrar... deixe-me ver... ah, já sei: é a Lúcia.

- Aleluia! Pelo visto, o álcool ainda não destruiu todos os seus neurônios. É ela mesma.

A Lúcia! Enquanto corria atrás da Daniela, que o desprezava, a Lúcia rastejava por ele, que a repudiava. Convenhamos: a Daniela era um monumento, uma deusa, a mulher mais fantástica, maravilhosa e sensual da escola, do bairro, da cidade, do mundo ...da Via Láctea. Quando saiam juntos, ele pressentia os olhares famintos dos outros homens mapeando aquele corpo sinuoso, escultural. Dava até para ouvir os espasmos de bocas salivando. E a Lúcia, com muito boa vontade, até que ficava um bocadinho atraente, mas só quando observada de um único e determinado ângulo. Confrontá-la com a Daniela seria uma inominável covardia, algo assim como um partida entre o time do Barcelona e o da Portuguesa. Sorriu ante a comparação: ele aprendera com os políticos a valer-se de metáforas futebolísticas para explicar tudo o que não conseguia descrever com outras palavras.

Os três ficaram nesse jogo de gato e rato, interpretando ao vivo aquele famoso poema do Drummond, durante anos, até que, inexplicavelmente, a Daniela levou um fora do noivo e foi procurar consolo nos seus braços. Logo estavam namorando. E casaram-se tão rapidamente, que as más línguas chegaram a comentar que a Daniela poderia estar grávida, o que não era verdade, como se viu depois.

O início foi paradisíaco. Não há como negar que eles viveram bons momentos juntos. Por influência de um tio bem posto em Brasília, ele obtivera um cargo de assessor de um famoso deputado. Melhor impossível: ganhava oficialmente bem (sem falar nos “recursos não contabilizados”...), tinha todas as regalias, inúmeras mordomias e era muito respeitado.

Passados alguns meses, porém, a realidade despencou sobre as suas cabeças, como entulhos e destroços de um prédio implodido. Amores unilaterais sempre acabam soterrados pela inexorabilidade dos fatos, pela ausência de sentimentos e... pela falta de dinheiro. A polícia federal flagrou o deputado, seu chefe, com dólares embaixo da calça (foi ele o verdadeiro precursor da “cueca ecológica”). Como não era muito popular entre os seus assim denominados “pares”, o parlamentar perdeu o mandato. E ele, o emprego.

Ato contínuo, o dinheiro acabou e a Daniela foi embora. Ela não conseguia viver sem carros do ano, sem as roupas da Daslu e sem as três empregadas. Eles ainda se encontraram furtivamente uma ou duas vezes. “O sexo! Pelo menos, o sexo era bom” – ele tentava argumentar, quase implorando, enquanto ela retrucava: “Sexo não enche barriga. Aliás, enche, mas não do jeito que eu quero...”.

Semanas depois, Daniela conseguiu se aproximar do Adriano, que já era presidente de uma indústria mundial de pneus. Casaram-se e foram viver em Nova York, onde fica a sede da empresa.

Desde então, ele entrara em uma depressão profunda, descera às profundezas do quinto dos infernos, passara a beber diuturnamente e chegara àquele estágio em que nada mais importava.

Paradoxalmente, essa ampla meditação sobre a realidade fez com que ele voltasse à situação surrealista:

- Mas, o que tem que ver a Lúcia? Onde você conseguiu essas fotos, se nem eu sabia que elas existiam. Quem as tirou?

- Calma! Isto não é um programa de entrevistas e você, desnutrido desse jeito, está longe de parecer o Jô Soares. Não são fotos. São flagrantes da sua vida; reproduções de imagens registradas pelo seu cérebro.

Definitivamente, ele iria parar de beber. A partir da próxima segunda-feira, nunca mais chegaria perto de um copo de bebida. Aquele “outro ele” só poderia ser reflexo de um fígado corroído.

- Então, vamos combinar: essas imagens todas são reproduções do meu cérebro combalido. E quanto à Lúcia, vai falar de uma vez onde ela entra nessa história toda ou vai continuar enrolando, como se estivesse depondo numa CPI?

Serenamente, o “outro ele” voltou ao livro e mostrou-lhe uma nova foto (ou melhor: uma nova “imagem registrada”). De um casamento. A noiva era a Lúcia, sem dúvida. E o noivo... o noivo parecia com o.... ah, com o Décio. Isto! Era o Décio. O “outro ele” percebeu:

- Pela sua expressão, você reconheceu o noivo. Pois, então: o Décio casou-se com a Lúcia, que provou ser uma grande mulher e, como reza o antigo ditado, transformou-o em um grande homem. Ela levou o Décio à posição de destaque financeiro e social que ele ocupa hoje. Ela foi e continua sendo o seu esteio, o seu suporte, a sua guarida. Ela poderia ter sido tudo isso para você. Veja só como uma escolha, como uma simples escolha equivocada pode arruinar uma vida inteira.

Compenetrado, ele ouvia o “outro ele” recitar aquela cantilena. E o pior é que as suas palavras eram embasadas, tinham fundamento. Não havia como rebatê-las. O “outro ele” prosseguiu:

- Você certamente está pensando: o que adianta ficar com essa conversa toda se o que está feito está feito e não pode ser mudado? Todavia, a chave, a solução do enigma, a razão da minha presença aqui – que você achou inverossímil, a princípio - é exatamente esta: eu posso mudar o seu passado e, através dele, o seu presente e o seu futuro! Eu detenho poderes para lhe dar uma segunda e última chance de reverter esse quadro de miserabilidade; uma oportunidade para torná-lo um homem novamente.

Ele continuava ouvindo boquiaberto e só teve forças para murmurar, irônico:

- Mudar o passado como, seu maluco? Você tem uma máquina do tempo? Fala sério! Eu já vi esse filme - ele falava e gargalhava a um só tempo.

- Muito mais fácil do que isso, meu caro. Basta penetrar neste livro e você poderá modificar radicalmente a sua triste história.

Ele voou para a cozinha, outra vez. Entornou mais uma dose. O “outro ele” nem tentou impedi-lo, tendo em vista o seu estado apoplético. Ele voltou babando cachaça e bradando em bom som:

- Vou entrar nesse livro, seu louco? Um cara do meu tamanho vai caber num espaço desse? Mas, quer saber? Eu não tenho nada a perder. Foram-se a honra, a dignidade, a decência, a hombridade, a mulher, o dinheiro e a saúde - não necessariamente nessa ordem. Só sobrou este fiapo de vida, que se mantém como um malabarista na corda bamba e sem rede embaixo. Vou encarar essa, sim. Tomo mais uma, crio coragem e mergulho de cabeça em qualquer lugar, até naquela parede, se for necessário.

O “outro ele” interveio:

- Basta de bebida, homem. Contudo, que bom que você tomou pé da sua condição e está disposto a melhorá-la. Vamos lá, então: a hora é agora! Prepare-se. Olhe fixamente para esta página do livro da sua vida. Concentre-se...concentre-se...não pense em mais nada... sinta-se voltando nos anos, o relógio movendo-se rapidamente, vertiginosamente, no sentido anti-horário... as folhas do calendário sendo arrancadas pelo deslocamento do ar... concentre-se...

Ele fez tudo o que o “outro ele” ordenou e descobriu que a coisa funcionava de verdade. De repente, viu-se em meio a um turbilhão de acontecimentos. Milhares de rostos, corpos, objetos, carros, ruas, imóveis... tudo passava por ele zunindo, em um ritmo espacial, estonteante; ele se sentia como se estivesse dentro de um túnel de vento. Num dado momento, a velocidade foi reduzindo gradativamente e o ar rarefeito fez com que ele perdesse a consciência. Voltou a si, minutos depois. Ou horas ou anos antes. (Como medir o tempo quando se está viajando por ele?)

Inacreditavelmente, ele estava de volta à casa que fora dos seus pais. A primeira coisa diferente que notou foi a camisa estampada em cores berrantes que estava vestindo. Depois, as calças e os sapatos ridiculamente fora de moda. Correu para o espelho e quase caiu duro: estava com cabelos longos e –hosana! – as rugas tinham sumido. Teve a impressão de que alguém havia lhe injetado um tambor de botox. Não teve mais dúvidas: tinha voltado aos seus vinte e poucos anos.

Sua missão era resgatar a própria existência e ele precisava agir rapidamente. Saiu à procura de Lúcia. Tão logo a encontrou, tascou-lhe um beijo lascivo, demorado, voluptuoso, apaixonado e gritou, bem no meio da rua: “Eu te amo! Eu te amo!!! Case comigo!”

Lúcia, aturdida, não sabia o que dizer. Mas, é claro que ficou feliz com o pedido e o aceitou imediatamente.

Semanas depois, eles estavam diante do altar, trocando juras de amor e fidelidade eternos.

O tempo passava normalmente na nova vida e, como se estivesse revendo cenas de um documentário sobre a sua história, ele foi convidado a trabalhar como assessor do mesmo deputado federal. E o deputado foi flagrado com dólares na cueca, terminou cassado e ele perdeu o emprego.

- Que sina desgraçada! Se fosse pra ficar desempregado e na merda, eu não precisaria ter feito essa regressão toda.

Lúcia ouviu o marido reclamar e atribuiu aquelas frases desconexas ao desespero causado pela perda do cargo. Entretanto, ao contrário da Daniela, ela deu-lhe todo o apoio possível. Consolava-o a todo instante, tentando levantar a sua moral, e fez mais: começou a vender, para os amigos, parentes e vizinhos, os doces em compota que todos elogiavam, durante as reuniões que ela promovia em sua casa, nos idos das vacas gordas.

Lúcia também reuniu o dinheiro que havia economizado até então (diferente da Daniela, ela era econômica, sempre comprara suas roupas nas lojas de sacoleiros do Brás e pesquisava preços de tudo) e alugou um ponto, para vender os doces. O sucesso foi tão grande que, depois de poucos meses de trabalho duro, eles resolveram estabelecer franquias da confeitaria, que passou a chamar-se “La Vie en Doce”. Essa marca espalhou-se pelos quatro cantos do Brasil; em breve, eram quase cem as lojas franqueadas.

Em decorrência, os negócios se diversificaram. Eles constituíram uma holding e viraram donos de restaurantes, indústrias diversas, postos de gasolina, prestadoras de serviços, etc. De um império ilimitado.

Todavia, quanto mais trabalhava, na exata proporção em que se empenhava para fazer os negócios crescerem, Lúcia perdia os seus já parcos encantos femininos. Nem vista daquele certo prisma, ela conseguia atrair quem quer que fosse.

Ladinamente, valendo-se da confiança cega da mulher, ele foi passando todos os bens do casal para o seu nome. Quando terminou, moveu um processo de divórcio litigioso, alegando um cabedal de coisas sem fundamento e outras tantas fundamentadas e ganhou a ação. Num gesto que chamou de demonstração de desapego e desprendimento, ele consentiu em pagar uma pensão módica à ex-mulher, para que ela pudesse sobreviver com um certo conforto.

Nesse ínterim, ele foi atrás da Daniela, que ainda estava solteira. Casou-se com ela, quando saiu o divórcio, mas não antes que ela firmasse um detalhado e leonino (a seu favor, é claro) pacto nupcial, elaborado por uma junta de advogados, que preservava todos os seus direitos e, especialmente, todo o seu patrimônio, no caso de separação, fossem quais fossem os motivos.

Completado o plano, ele reuniu todos os seguranças do escritório central da sua empresa, além dos vigias do condomínio de luxo em que morava, e ordenou:

- Ouçam bem: se um cara bonitão, simpático, incrivelmente parecido comigo e carregando um livrão imenso embaixo do braço aparecer me procurando, não o deixem entrar de jeito nenhum. Para todos os efeitos, eu viajei e não tenho data para voltar.

Os anos de estágio nos saguões do Congresso não poderiam ter sido em vão...